
Setembro Amarelo
O suicídio permanece como um dos temas mais silenciados da experiência humana. Em muitos ambientes, ele ainda é tratado como tabu — envolto em medo, preconceito e desinformação. O silêncio que o cerca, muitas vezes sustentado pela crença equivocada de que falar sobre o assunto pode “incentivar” comportamentos suicidas, acaba por gerar um efeito oposto ao desejado: cria um espaço de invisibilidade que alimenta a vergonha, a estigmatização e a sensação de não pertencimento. Para alguém em sofrimento intenso, esse silêncio pode ser interpretado como uma confirmação de que sua dor não tem lugar no mundo, não merece escuta nem acolhimento — o que aprofunda o isolamento e o desamparo psíquico.
Ao contrário do que muitos mitos sugerem, falar sobre suicídio com responsabilidade não induz ao ato. Pelo contrário: abre uma possibilidade concreta de conexão, escuta e cuidado. O diálogo empático e informado permite que a dor seja nomeada, reconhecida e compartilhada, funcionando como um fator de proteção essencial. A escuta sem julgamento e a validação do sofrimento podem interromper o ciclo de desesperança. Às vezes, o simples gesto de perguntar “como você está?”, com genuíno interesse e disponibilidade afetiva, pode ser decisivo — não por resolver o problema, mas por sinalizar que a pessoa não está sozinha.
É fundamental, no entanto, distinguir o cuidado clínico e comunitário da divulgação midiática. As políticas públicas de saúde orientam que a exposição sensacionalista de casos de suicídio nos meios de comunicação deve ser evitada, justamente para prevenir o chamado “efeito contágio” ou “efeito Werther” — fenômeno em que a repetição de narrativas trágicas, sem mediação ética, pode influenciar pessoas vulneráveis. Isso não significa silenciar o tema, mas sim comunicá-lo com responsabilidade: sem detalhes de métodos, sem romantizações, sem espetacularização da dor. O foco deve estar em caminhos de cuidado, histórias de superação, sinais de alerta e serviços de apoio. Tanto a Organização Mundial da Saúde quanto o Ministério da Saúde oferecem diretrizes específicas para jornalistas, comunicadores e influenciadores digitais. A prevenção exige um duplo movimento: quebrar o tabu nos espaços íntimos — como famílias, escolas e comunidades — e, ao mesmo tempo, fortalecer políticas públicas que eduquem a sociedade a falar de forma segura, ética e protetiva.
Entre os principais sinais de alerta que indicam sofrimento emocional estão a preocupação constante com a morte, a falta de esperança, o sentimento de inutilidade e a percepção de que a vida perdeu o sentido. Essas manifestações podem aparecer em frases como “não aguento mais”, “queria sumir” ou “não vejo saída”, que, mesmo sem expressar uma intenção suicida direta, revelam dor psíquica profunda. A expressão de ideias suicidas, mudanças bruscas de comportamento, alterações no sono, na alimentação e no humor, isolamento de amigos e familiares, uso abusivo de álcool ou drogas e queda no desempenho escolar ou profissional também são indícios relevantes. Além disso, as autoagressões — como cortes, queimaduras ou outras formas de lesão autoinfligida, muitas vezes escondidas por roupas compridas — funcionam como pedidos silenciosos de ajuda, que precisam ser escutados com atenção e sem julgamento.
A prevenção começa pelo fortalecimento dos fatores de proteção: vínculos afetivos estáveis, sensação de pertencimento, acesso regular a cuidados em saúde, rotinas de sono e alimentação, atividades físicas prazerosas, práticas de autorregulação emocional e projetos de vida realistas. Quanto mais oportunidades a pessoa tem de experimentar apoio e sentido, maior a chance de atravessar crises sem recorrer a soluções extremas.
No plano da escuta clínica e comunitária, três atitudes são fundamentais: presença (estar ali, inteiro, sem pressa), validação (reconhecer a dor como legítima) e curiosidade respeitosa (perguntas abertas que convidem à autoescuta). Evitar interpretações apressadas e conselhos prontos reduz a defensividade e amplia a confiança na relação.
É essencial nomear o que não ajuda: minimizar (“isso passa”), moralizar (“falta fé/força”), intelectualizar (“racionalize melhor”), comparar (“tem gente pior”) ou pressionar por promessas (“promete que nunca mais vai pensar nisso?”). Essas respostas podem intensificar a vergonha e o isolamento. Melhor é reconhecer os próprios limites: “não tenho todas as respostas, mas estou com você e quero ajudar a buscar suporte”.
Na mídia e nas redes sociais, comunicar com ética significa evitar detalhes de método, linguagem sensacionalista e imagens que romantizem a morte. O foco deve estar em histórias de superação, informações sobre sinais de alerta, caminhos de cuidado e serviços de apoio. Isso diminui o risco de contágio e transforma a cobertura em ferramenta de prevenção.
Ambientes de trabalho, assim como escolas e universidades, podem ser espaços de cuidado. Políticas claras de promoção da saúde mental, canais de escuta sem retaliação, formação de lideranças para manejo de crises, flexibilização temporária de metas e rotinas de retorno ao trabalho após afastamentos reduzem riscos. Reconhecer o burnout e o esgotamento como questões organizacionais — e não fraquezas individuais — é parte da responsabilidade institucional.
Hoje, o burnout e o esgotamento profissional surgem como fatores contemporâneos relevantes, com sinais como despersonalização, queda de energia, presenteísmo e falta de motivação. Mas uma nova expressão vem ganhando força para nomear um fenômeno ainda mais silencioso: o quiet cracking. Diferente do quiet quitting, em que o trabalhador se desengaja de forma consciente e deliberada, o quiet cracking descreve uma rachadura interna — emocional e psíquica — que não se manifesta abertamente, mas corrói por dentro.
Nesse quadro, a pessoa continua presente no trabalho, cumpre suas funções, evita conflitos, mas está emocionalmente quebrada. Sofre em silêncio, muitas vezes por medo de represálias, insegurança financeira ou falta de alternativas. Esse sofrimento invisível pode ser confundido com apatia ou desinteresse, quando na verdade é um sinal de exaustão profunda. O risco é alto: sem escuta, sem validação e sem espaços seguros para expressar o mal-estar, o quiet cracking pode evoluir para quadros depressivos, crises de ansiedade ou ideação suicida.
Do ponto de vista institucional, é urgente reconhecer que a saúde mental no trabalho não se limita à ausência de sintomas. É preciso criar ambientes onde o cuidado seja parte da cultura organizacional: canais de escuta sem retaliação, políticas de prevenção, formação de lideranças empáticas, flexibilização de metas em momentos críticos e rotinas de retorno cuidadoso após afastamentos. Reconhecer o sofrimento como legítimo — e não como fraqueza — é um passo essencial para transformar o trabalho em espaço de vida, e não de adoecimento.
Nas instituições de ensino, protocolos simples fazem diferença: identificar sinais (queda brusca no rendimento, evasão, conflitos recorrentes), mapear fluxos de encaminhamento, treinar professores e funcionários como “porteiros de cuidado” — pessoas que escutam e orientam o primeiro passo — e envolver famílias com acolhimento claro e sensível.
A atenção primária em saúde é uma porta de entrada estratégica. Profissionais de UBS e equipes de saúde da família podem rastrear sofrimento emocional em consultas de rotina, oferecer psicoeducação, construir planos de segurança e articular encaminhamentos a CAPS e serviços especializados quando necessário.
O plano de segurança é um recurso prático e colaborativo: identificar sinais pessoais de agravamento, listar estratégias de enfrentamento que funcionam para a pessoa, nomes e contatos de confiança, serviços de saúde e apoio 24h (como o CVV 188). Evita-se discutir métodos; o foco é no que fazer e quem acionar quando o risco aumenta.
A segurança de meios é outra estratégia eficaz: reduzir o acesso a instrumentos potencialmente letais durante períodos de crise, com apoio da rede familiar e comunitária, protege a vida no momento mais agudo do sofrimento. Pequenas barreiras temporárias podem impedir atos impulsivos e ganhar tempo para o cuidado.
Após um óbito por suicídio, ações de posvenção — suporte a familiares, amigos, colegas e comunidade — acolhem o luto complexo, diminuem o risco de novos casos e orientam sobre onde buscar ajuda. É um cuidado sensível, que reconhece a multiplicidade de emoções — dor, culpa, raiva, alívio, confusão — e oferece continência.
O cuidado precisa ser culturalmente sensível. Pessoas LGBTQIA+, negras, indígenas, migrantes e em situação de rua vivenciam estressores específicos e muitas vezes desconfiam dos serviços por experiências prévias de discriminação. Formação antirracista e antidiscriminatória, além de parcerias com lideranças comunitárias, aumentam adesão e efetividade.
No tema homens e masculinidades, trabalhar expressões de afeto, ampliar repertórios de linguagem emocional e incentivar o pedido de ajuda ajuda a romper o silêncio aprendido. Grupos de pares, campanhas voltadas ao público masculino e modelos de referência que falem abertamente sobre cuidado têm impacto simbólico poderoso.
Para mulheres e pessoas cuidadoras, sobrecarga invisível, violência doméstica e exaustão emocional são fatores frequentes. Redes de proteção, acesso rápido a serviços de enfrentamento à violência e validação do cansaço crônico — não como “frescura”, mas como alerta de adoecimento — são componentes essenciais do plano de prevenção.
Em crianças e adolescentes, o foco inclui combate ao bullying e ao cyberbullying, educação socioemocional, orientação às famílias sobre rotinas, sono e limites com afeto, além de escutas pontuais que não infantilizem a dor. A presença de um adulto significativo e confiável é um fator de resiliência de alto impacto.
Em idosos, o combate à solidão, a facilitação de transporte e acesso a serviços, grupos de convivência, manejo adequado da dor crônica e inclusão digital básica (para reduzir o isolamento) são medidas protetivas. Visitas domiciliares e monitoramento ativo após perdas recentes ajudam a identificar agravos precocemente.
O álcool e outras drogas podem funcionar como anestesia emocional, mas aumentam a impulsividade e reduzem a avaliação de risco. Abordagens integradas — que tratem simultaneamente o uso de substâncias e o sofrimento emocional — têm melhores resultados do que abordagens fragmentadas.
Cuidar de quem cuida é parte da prevenção. Familiares, amigos e profissionais também precisam de espaços de supervisão, descanso e apoio emocional. A exaustão do cuidador é real e, quando ignorada, pode levar a respostas impacientes ou evitativas que fragilizam a rede.
Por fim, a mensagem que sustenta tudo: a crise é um estado, não uma identidade. Com apoio, informação e tempo, o sofrimento muda de forma. Oferecer presença, caminhos e esperança concreta é, muitas vezes, o gesto que permite que a vida continue — um dia de cada vez.
E sempre, para qualquer situação de risco ou necessidade de conversar: CVV — 188 (24h, gratuito e sigiloso) e www.cvv.org.br. Se houver perigo iminente, acione o SAMU (192), o Corpo de Bombeiros (193) ou procure o serviço de emergência mais próximo. Você não está só.