Série Conceituando: O inconsciente

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Nota: Em 2010, começamos o blog com uma série de textos explicitando os conceitos principais junguianos. Passados 15 anos, faremos uma série de textos revisitando os conceitos fundamentais, que será chamada de “Conceituando”. 

O inconsciente é um conceito fundamental para todas as abordagens psicodinâmicas. Por isso, cada uma delas aprofundou aspectos que consideravam mais relevantes, desenvolvendo uma percepção própria e, assim, adjetivando o inconsciente de acordo com sua perspectiva teórica. Dessa forma, falamos em inconsciente junguiano, inconsciente freudiano, inconsciente reichiano, inconsciente lacaniano, inconsciente kleiniano, inconsciente winnicottiano, entre outros.

A pluralidade de abordagens teóricas sobre o inconsciente pode ser comparada à escalada de uma imponente montanha, onde cada trilha simboliza uma corrente específica da psicologia. Cada teórico escolhe um caminho próprio para atingir o cume, enfrentando desafios distintos e contemplando paisagens singulares ao longo da subida. Apesar das diferenças nos percursos e nos olhares lançados sobre o trajeto, todos têm como objetivo comum alcançar uma compreensão mais profunda do inconsciente.

 Assim, cada perspectiva é verdadeira e correta dentro de seu contexto, pois reflete a experiência e o olhar de quem percorre aquele caminho. Reconhecer o valor da diversidade de pensamentos é fundamental para o desenvolvimento científico.  É nesse sentido que Jung afirmou:

No tocante à psicologia, acho melhor renunciar à idéia de que estejamos hoje em condições de fazer afirmações “verdadeiras” ou “corretas” sobre a essência da psique. O melhor que conseguimos fazer são expressões verdadeiras. Entendo por expressões verdadeiras uma confissão e uma apresentação detalhada do que se observa subjetivamente. Alguém colocará ênfase especial na forma do que encontrou e se arvorará em autor do seu achado, outro dará mais importância à observação e falará daquilo que se manifesta, valorizando sua atitude receptiva. A verdade estará provavelmente entre ambos: a verdadeira expressão é a que dá forma à observação. (JUNG, 1989, p.324)

Hoje tomamos o termo “inconsciente” com certa naturalidade. No entanto, ele suscitava (e ainda suscita) incômodo à mentalidade científica mais restrita. O conceito foi inicialmente discutido na filosofia por pensadores como Schelling, C.G. Carus e von Hartmann, sendo posteriormente incorporado por Freud, na psicanálise, às ciências da saúde. Em alemão, “inconsciente” significa literalmente “o não sabido” ou “o desconhecido”. O termo chegou até nós a partir da tradução em inglês, “unconscious”.

No prefácio do texto “A Função Transcendente”, Jung traz uma perspectiva acerca do inconsciente que é muito interessante, ele afirma:

O inconsciente, com efeito, não é isto ou aquilo, mas o desconhecimento do que nos afeta imediatamente. Ele nos aparece como de natureza psíquica, mas sobre sua verdadeira natureza sabemos tão pouco — ou, em linguagem otimista tanto quanto sabemos sobre a natureza da matéria. (JUNG, 2000, p. XI)

Portanto, o inconsciente é um aspecto da experiência psíquica que nos afeta. Ou seja, ele está sempre presente, mesmo que oculto. É a sombra em cada ação, a ambiguidade no falar ou a dubiedade no olhar ou expressão. Por esse motivo, o inconsciente não é algo em si mesmo, mas a expressão viva da psique para além da consciência.

As mais diversas descrições do inconsciente são, em última análise, expressões verdadeiras, pois são descrições que nos possibilitam pensar as diferentes formações do inconsciente. Temos muitos modelos de compreensão do inconsciente, dentre eles: o topológico, o dinâmico, o imaginal, o maquínico, o somático, o linguístico, e outros.  Esses modelos devem ser compreendidos como expressões e não como delimitações ou definições rígidas do inconsciente.

O inconsciente Junguiano

Jung apresentou uma concepção revolucionária do inconsciente. Ele compreendeu que o inconsciente não era apenas fruto da experiência pessoal, mas também estava enraizado nos processos evolutivos da alma humana. Assim, denominou de inconsciente pessoal a camada relacionada às vivências individuais e de inconsciente coletivo a esfera mais profunda, impessoal, vinculada à evolução da humanidade.

As concepções filosóficas acerca do inconsciente, propostas por Carus e Hartmann, assim como os primeiros apontamentos de Freud no livro A Interpretação dos Sonhos, eram conhecidas por Jung. No entanto, o fator determinante para o início de seus estudos  sobre o inconsciente foi sua experiência profissional em pesquisa e clínica.

Em 1903, Jung iniciou a pesquisa sobre associação de palavras visando compreender as regras que envolveriam o processo de associação de palavras que, acreditava-se, a baixa tensão associativa estaria relacionada ao adoecimento psíquico. Os achados mais relevantes da pesquisa envolviam alterações no tempo de reação e a temática em torno da palavra estímulo, levando a formação da teoria dos complexos de tonalidade afetiva, que o possibilitou compreender e aceitar, ao menos em parte, as propostas de Freud,

Desta forma, Jung formulou sua compreensão acerca do inconsciente pessoal a partir da teoria dos complexos. Durante o período em que Jung colaborou com Freud, ele pôde se dedicar a clínica pessoal em paralelo à sua prática psiquiátrica com pacientes graves, no Hospital Psiquiátrico Burgholzli.

Na prática clínica com pacientes graves, Jung observou que as imagens descritas nos delírios eram análogas às imagens de narrativas míticas, muitas delas provenientes de culturas antigas às quais os pacientes não tinham acesso. A partir dessas percepções, Jung compreendeu que, nos delírios desses pacientes, assim como em alguns sonhos de pacientes neuróticos, havia imagens que não era possível compreender apenas pela história pessoal, pois refletiam aspectos impessoais e míticos. Esses padrões coletivos que se manifestavam em imagens arquetípicas, foram chamados de arquétipos.

O inconsciente coletivo é uma expressão viva e ativa da história evolutiva humana, a esse respeito Jung afirmou que

De onde procedem então essas fantasias mitológicas, se não têm qualquer origem no inconsciente pessoal e, por conseguinte nas experiências da vida pessoal? Sem dúvida provêm do cérebro precisamente do cérebro, e não de vestígios de recordações pessoais, mas da estrutura hereditária do cérebro(…)
Este inconsciente, sepultado na estrutura do cérebro e que revela sua presença viva apenas na fantasia criativa, é o inconsciente suprapessoal. Ele vive no indivíduo criativo, manifestasse na visão do artista, na inspiração do pensador, na experiência interior da pessoa religiosa. O inconsciente suprapessoal, como estrutura cerebral generalizada, é um espírito “onipresente” e “onisciente” que tudo pervade. Conhece o ser humano como ele sempre foi e não como é neste exato momento. Conhece-o como mito.
Mas não se deve confundir fantasias mitológicas com ideias hereditárias. Não se trata disso, mas sim de possibilidades inatas de ideias, condições a priori de produzir fantasias, comparáveis talvez às categorias de Kant. As condições inatas não geram conteúdos mas conferem determinadas configurações aos conteúdos adquiridos. Essas condições universais decorrentes da estrutura hereditária do cérebro são a causa da semelhança dos símbolos e dos motivos mitológicos – ao surgirem – em toda parte do mundo. O inconsciente coletivo é aquele pano de fundo escuro sobre o qual a função de adaptação do consciente se destaca nitidamente. (Jung, 2000b, p.15-16)

Como pano de fundo da psique, o inconsciente coletivo revela um aspecto fundamental que integra toda a humanidade. Assim, todos os seres humanos, independentemente de cultura, gênero, etnia ou condição socioeconômica estão em um mesmo momento evolutivo e compartilham, as mesmas bases biológicas e psíquicas. Essas bases comuns nos caracterizam como espécie.

Tal como o corpo representa uma espécie de museu de sua história filogenètica, com o psíquico dá-se o mesmo. Não temos razão alguma para supor que a estrutura peculiar da psique seja a única coisa no mundo que não tem qualquer história além de suas manifestações individuais. É impossível negar que a nossa consciência tenha uma história que abrange cerca de cinco mil anos. A consciência do eu porém é a única que tem sempre um novo princípio e um fim prematuro. A psique inconsciente no entanto é, não apenas infinitamente velha, mas tem igualmente a possibilidade de evoluir rumo a um futuro igualmente remoto. Ela forma a species humana e constitui um componente da mesma, assim como o corpo que é efêmero individualmente, mas de idade incomensurável, coletivamente. (Jung, 2000c, p.280)

As ideias sobre o inconsciente coletivo fizeram com que a obra de Jung fosse queimada e proibida nos territórios ocupados por Hitler. Isso ocorreu porque Jung afirmava que, independentemente do fenótipo, todos possuem a mesma organização e potencial psíquico. As bases biológicas do inconsciente e dos arquétipos ainda são pouco exploradas pelos junguianos; no entanto, são importantes porque refutam acusações metafísicas à obra de Jung e possibilitam uma aproximação com a neurociência, como vemos nos trabalhos de analistas junguianos contemporâneos, como Jean Knox.

Referências Bibliográficas

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989

JUNG, C.G.  Natureza da psique, Petrópolis: Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 2000b

JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000c

Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. .

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