Polarização Eleitoral no Brasil – Um olhar junguiano a partir da Teoria dos Complexos Culturais

Texto publicado em 22 de outubro de 2018, no site do CEPAES

Fabrício Fonseca Moraes[1]

Kelly Guimarães Tristão[2]

“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa”

(Cálice – Chico Buarque)

Desde as eleições presidenciais de 2014 vivemos no Brasil um turbilhão de afetos e posturas exaltadas, que dividiram o país, naquele momento sob a representação de dois partidos políticos o PSDB (Partido da Social Democracia do Brasil) e o PT(Partido dos Trabalhadores). O abalo causado pelo momento político-eleitoral se desdobrou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) e na configuração de uma extrema direita que não tinha muita forma no Brasil, desde o fim da ditadura Militar (1964-1985).

O irrompimento desse fenômeno da extrema direita, tomou forma, corpo e voz na campanha eleitoral do, então candidato, Jair Messias Bolsonaro, do PSL (Partido Social Liberal) cujo discurso era caracterizado pelo nacionalismo, conservadorismo, moralismo, racismo, misoginia, lgbtfobia, desprezo por direitos humanos, relativização da tortura e negação da ditatura (assim como de movimentos de direita históricos como o fascismo, nazismo e o holocausto na II Guerra Mundial). O movimento liderado por Bolsonaro chamou atenção e, certa consternação, por ser um movimento tão heterogêneo que agregou tanto classes historicamente privilegiadas e orientadas pela direita quanto intelectuais, mulheres, homossexuais e negros – vítimas dos discursos preconceituosos. A complexidade desse fenômeno não nos permite ser simplistas a ponto de rotular de forma estereotipada a todos indistintamente “fascistas”, adjetivo frequentemente utilizado pelos opositores para identificar os seguidores de Bolsonaro nas mídias sociais. 

Por outro lado, notamos que esse fenômeno da extrema direita não é uma peculiaridade do Brasil, mas um fenômeno que vem crescendo em diversos países como EUA, Alemanha, França, Itália, Grécia dentre outros. Precisamos, portanto compreender a partir de uma perspectiva mais ampla sobre como somos todos tomados por essa convulsão emocional que nos afeta de modo semelhante a vários países.

Para além das experiências em redes sociais, vemos o sofrimento causado pela polarização – o medo, angústia, desesperança – manifestos no dia a dia do consultório, onde lidamos com o sofrimento de pessoas afetadas pelo movimento e suas consequências, como divisão e hostilidade surgida dentro das famílias, igrejas e demais grupos sociais.

Na Psicologia Analítica, um estudo contemporâneo que vem ganhando destaque e que nos possibilita compreender esses fenômenos é a teoria dos complexos culturais. Esta teoria se desenvolveu a partir dos conceitos da teoria dos complexos de Jung passando pelo conceito de inconsciente cultural de Joseph Henderson.

De Jung aos Complexos Culturais

A psicologia de grupo fez parte da preocupação de Jung desde o início de sua obra, no prefácio de 1916, do livro Psicologia do Inconsciente:

 A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação.” (JUNG, 1999, p. VIII)

Jung compreendia que, assim como um conteúdo arquetípico constelado na psique pessoal direcionava a forma de perceber, interpretar e agir, a mesma dinâmica arquetípica interferiria na relação coletiva dos grupos e nações em relação ao ambiente e outros grupos. Um de seus principais trabalhos na década de 30 foi Wotan (1936), no qual Jung, apontou como o povo alemão havia sido tomado por um dinamismo arquetípico, identificado pelo deus Wotan, deus dos ventos. Em essência, significaria compreender que uma dinâmica impessoal, baseada num princípio enraizado na experiência cultural germânica, fora ativado.

A compreensão de Jung, baseada numa aplicação da teoria dos arquétipos, estava muito associada por aspectos impessoais da experiência do grupo ou nação, isto é, ficando aspectos históricos e de constituição da identidade daquele grupo/nação em posição secundária.

Devemos notar que nas décadas de 30 e 40, Jung participou de discussões acerca dos acontecimentos de sua época – seja em entrevistas em rádio[3] ou através de textos. Contudo, a natureza ambígua tanto de suas posições pessoais quanto de seus trabalhos sobre a psique coletiva resultou numa reação fortemente negativa, tanto pessoalmente quanto à psicologia analítica. Visto que a perspectiva apresentava uma visão reducionista ou mesmo estereotipada dos grupos e povos, essas limitações em seus trabalhos fizeram com que o mesmo fosse acusado de racista e, de forma específica, de antissemita. Andrew Samuels (1995) demonstra como a ambivalência de Jung em relação aos judeus e ao nazismo, seja por suas ações, publicações e omissões, o colocou numa situação condenável nesse período da história.

O mal-estar gerado pelos equívocos de Jung, marcaram as gerações seguintes de junguianos que ficaram

profundamente feridos e limitados pelas acusações de anti-semitismo contra Jung e seus seguidores. Depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, poucos queriam abordar o tema “caráter nacional” ou complexos culturais por medo de serem contaminados por alegações de discriminação ou, muito pior, de contribuir para a justificação do genocídio.[4] (SINGER, & KAPLINSKI, 2010, p. 22-3)

Apesar do receio por parte de muitos junguianos em empreender pesquisas no campo da psicologia de grupo, Joseph Henderson, um dos colaboradores mais próximos a Jung, desenvolveu o conceito de inconsciente cultural em 1962. Segundo Henderson o inconsciente cultural é

uma área da memória histórica que se situa entre o inconsciente coletivo e o padrão manifesto da cultura [e] tem algum tipo de identidade advinda dos arquétipos do inconsciente coletivo, que auxilia na formação do mito e do ritual e também promove o processo de desenvolvimento. em indivíduos[5] ( HENDERSON, 1990, p. 103).

Henderson promoveu uma distinção e ampliação importante na noção de inconsciente coletivo de Jung. O inconsciente cultural seria uma zona intermediária entre a psique arquetípica e a psique pessoal. Henderson, situou de um lado das bases arquetípicas, impessoais e filogenéticas comuns a toda humanidade e do outro, as representações ou imagens arquetípicas na cultura, possibilitando compreender cada grupo em sua peculiaridade, história e formação de identidade (Henderson, 1990). Assim, o autor possibilitou uma integração da teoria dos arquétipos com uma perspectiva sócio-histórica e intergeracional  que, inconscientemente, influenciam a constituição, atitudes e comportamento dos grupos.

O termo “complexo cultural” foi um derivado da teoria de Henderson, contudo, mencionado e não amplamente desenvolvido até o final dos anos 90, quando estudos passaram a dinamizar e aplicar a compreensão do inconsciente cultural de Henderson com a Teoria dos Complexos de Jung, destacando-se os analistas junguianos Samuel Kimbles e Thomas Singer na sistematização e ampliação dos estudos no campo dos complexos culturais.  

Os complexos Culturais e as Defesas Arquetípicas do Espirito Grupal

Na psicologia individual os complexos pessoais se formam em torno de núcleos arquetípicos que atraem e condensam a experiência e história pessoal carregadas de afeto e significado, que dão o tom afetivo do complexo, servindo de referência ao Ego em seu processo de desenvolvimento. De modo similar, os complexos culturais são sistemas energéticos que organizam a psique cultural integrando a história, a identidade e idiossincrasias do grupo, fornecendo coesão e sentido ao grupo (KLIMBES, 2003)

Assim, os complexos culturais nos permitem compreender tanto a constituição e organização de um determinado grupo ou cultura, quanto os efeitos desses complexos culturais e psique individual, segundo Tristão (2018)

Ao se tentar compreender e organizar a história psicológica de determinada cultura, através dos complexos culturais, verifica-se que a memória cultural não se relaciona somente aos membros da cultura/grupo, mas à própria cultura/grupo que produz seus próprios campos emocionais. O memorial cultural se utiliza da psique individual de seus membros para difundir afetos e ideologias, de maneira a moldar valores, prescrições, rituais, expectativas e a própria história do grupo. Nessa direção, a maneira como os grupos/culturas concebem a dívida para com o passado, bem como as reparações exigidas do futuro, são profundamente influenciados pelos complexos culturais (p.116)

Pode-se compreender que os complexos culturais se caracterizam por: I) organizar o sistema de crenças e emoções coletivas; II) Operar de forma autônoma; III) Operar como campos energéticos afetados; IV) mediarem a relação emocional do indivíduo com os modelos culturais do grupo; V) proporcionar o sentimento de pertença, identidade e continuidade histórica (SINGER, 2003; TRISTÃO, 2018).

Os complexos culturais são expoentes do inconsciente cultural, assim, na maior parte das vezes não são percebidos através da história “oficial” ou da narrativa mítica da história de um grupo, mas como os indivíduos são afetados por essas narrativas. Os complexos culturais mobilizam afetos, fantasias, sentimentos no individuo e/ou no grupo “que promovem uma distorção do mundo para a consciência, gerando respostas automáticas para o outro. Isso torna a realidade do outro invisível” (TRISTÃO, 2018, p. 113).

É importante ressaltar que sempre que falamos de grupo, estamos pressupondo uma distinção entre o participante e o não-participante, de uma realidade interna e externa ao dinamismo do grupo. Isso nos remete aos aspectos mais basais e arquetípicos de nossa constituição humana que é a dependência do outro. Essa dependência se dá desde os aspectos fisiológicos do desenvolvimento ao processo de inserção na realidade simbólica que nos caracteriza como humanos. Antes de nos compreendermos como indivíduos, isto é, com um ego constituído e funcional, somos parte de um grupo e cultura que nos molda e nos oferece parâmetros nos quais nossa individualidade será constituída. Assim, a relação com a cultura (em seus aspectos conscientes e inconscientes), i.e, complexo cultural, está tão arraigado em nossa organização psíquica pessoal que não percebemos a relação com os complexos culturais. 

Isto porque, em seu aspecto positivo, ou seja, quando atua na psique coletiva de forma saudável, o complexo cultural oferece segurança e estabilidade ao indivíduo e ao grupo, por nutrir o sentimento de pertença e coesão, oferecendo assim uma percepção de continuidade e sobrevivência. Assim, a relação com o próprio grupo e com os demais grupos ocorre de forma segura e amistosa.

 O cerne da existência do grupo pode ser traduzida através complexo cultural ou pela imagem do “espirito grupal”.

O espírito grupal diz de uma representação da experiência matriz na vida do grupo. Quando essa experiência é considerada bem nutrida e saudável, o espírito grupal sustenta e orienta o grupo e cada membro. Do contrário, quando o espírito do grupo está traumatizado, vulnerável ou ferido, ativam-se as “defesas arquetípicas”, que podem assumir uma energia violenta e agressiva, a fim de proteger o “valor cultural sagrado” e a possibilidade de extinção do grupo (TRISTÃO, 2018, p.117)

As experiências traumáticas ou as feridas de grupo são experiências históricas, que atravessam gerações que permanecem vivas no inconsciente cultural do grupo. Como exemplo, podemos falar da escravidão dos negros no Brasil, cujos efeitos permanecem vivos, consciente ou inconscientemente, tanto nos descendentes dos negros escravizados quanto nos descendentes dos brancos escravagistas. Nos afrodescendentes as defesas do espírito grupal se fizeram perceber na resistência, que possui diferentes formas de expressão como religião, como o candomblé, guardiã da língua, do culto e ancestralidade; na capoeira, nas expressões artísticas, e nas últimas décadas no movimento negro, que busca a reparação da dívida histórica da escravidão. Por outro lado, os ecos do escravagismo ecoam no racismo estrutural, nos privilégios e na manutenção da estrutura discriminatória. Esses dois complexos culturais se constituíram a partir da ferida histórica infringida a um grupo.

Nessa compreensão do complexo cultural, é preciso entender três componentes fundamentais: (i) as feridas traumáticas do grupo, lugar ou valores que conduz o espírito do grupo; (ii) o medo de extermínio do espírito pessoal ou do grupo por um estrangeiro; (iii) o surgimento do guardião/protetor, ou vingador, promovendo a defesa aos “perseguidores” do espírito grupal. (TRISTÃO, 2018, p.117)        

As defesas arquetípicas do espirito grupal se manifestam de forma autônoma, incitando o grupo e indivíduos contra o grupo rival, com uma agressividade intensa como se a sobrevivência do grupo dependesse da aniquilação do grupo rival. Existe o caso onde a defesa arquetípica do espírito grupal não projeta no grupo rival, mas introjetado, é percebido com autodepreciação explicitado pelo humor ou autocomiseração, fazendo que a agressividade se volte para dentro do grupo. Pode-se apontar que casos de suicídio em grupos oprimidos possam apontar para essa direção.

Na relação entre dois grupos onde a polarização dos complexos culturais produzem um alinhamento reativo entre os grupos, Singer e Kaplinski (2010) afirmam que

Esses alinhamentos negativos realmente formam um “eixo” no sentido de que uma linha direta ou conexão é traçada entre os daimons de um grupo, protegendo seu centro sagrado e os daimons de um grupo rival, protegendo seu centro sagrado. Tais alinhamentos negativos criam as condições para a erupção de violência incompreensível, destruição e impulso para destruir. Ao fazer a ligação entre as defesas de um grupo e as defesas demoníacas de outro, elas formam, de forma mais potente, as condições no inconsciente cultural para o surgimento indiscriminado do mal e que, no inconsciente cultural, é o verdadeiro “eixo do mal”.[6](p.204-205. Tradução nossa)

A agressividade e violência marcam a manifestação das defesas do espírito de grupo. Devemos notar que frente a ameaças ao espírito de grupo, podem surgir “guardões, protetores ou vingadores” do espírito grupal, personificadas em lideranças que para o bem ou para o mal, agem como em nome do espírito do grupo.

A polarização no Brasil

A polarização política no Brasil tomou forma nos últimos anos, desde a última eleição eleitoral em 2014, então representada pelos candidatos Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) havia uma denominação de “coxinhas” e “pão com mortadela”, em 2018 os termos mudaram para “fascistas” e “comunistas”, elevando o tom para uma agressividade mais explícita.

Para amplificarmos e compreendermos a dinâmica desses complexos culturais gostaríamos de elencar três parâmetros: Estereótipo; feridas ou traumas de grupo e Guardião ou protetor.

O estereótipo se refere a percepção, fantasiosa ou não que um grupo faz do outro, projetando essas percepções como um “rótulo” com o qual o outro grupo pode ou não se identificar. Essas projeções falam de um elemento fundamental na coesão do grupo:  o medo. O medo se refere sempre a ameaça externa, ameaça a sobrevivência do grupo.

No grupo vinculado ao candidato da extrema direita o medo que se manifesta toma a forma de comunismo, que foi potencializado pela crise humanitária da Venezuela sob o governo de Maduro, criando um clima de emocional de tensão e medo que é alimentado pelas notícias falsas (fakenews). Assim,  tomadas pelo medo, que é manifesto reativamente na raiva, o grupo responde a todo discurso ou ação de solidariedade, justiça social ou de direitos humanos taxando-as de “comunistas”. Mesmo virtudes cristãs, no discurso religioso, são confundidas com o comunismo.  Devemos notar, que o medo que se apresenta é o medo da perda de direitos e privilégios, e do caos econômico.

Por outro lado, no grupo vinculado ao candidato da esquerda, o medo ou ameaça se manifesta na forma da ditadura ou, mais propriamente, do fascismo. Nesse caso, o medo do fascismo se associa ao discurso do candidato Bolsonaro que historicamente[7] era marcado pelo racismo, homofobia e misoginia, negação da ditadura militar no Brasil. Nesse caso, o medo que atravessa esse grupo é o medo da perda de direitos, da desproteção do estado, e o medo da violência contra minorias e pessoas em situação de risco social legitimado pelo discurso do candidato.

A projeção do estereótipo possui uma função especial pois identifica a ameaça ou o inimigo, fornecendo uma orientação ao grupo na percepção da realidade – podendo esta ser distorcida de acordo com os afetos do grupo.

As feridas ou traumas do grupo se referem a danos, prejuízos e ameaças objetivas, isto é, colocaram em risco a existência física do grupo (como por exemplo, a escravidão, perseguição politico-religiosa, genocídio) ou subjetiva, que afeta a autopercepção e a autoestima do grupo. Em ambos os casos, o trauma é historicamente constituído por ancestralidade (como grupos étnicos) ou por adesão, quando a pessoa entra no grupo, como no caso dos grupos religiosos ou grupos sociais. O sentimento de pertença integra o indivíduo à coletividade, isto é, ao complexo cultural. Sob esse aspecto, o indivíduo é parte do drama do grupo, integrado às gerações que o precederam. E, o mais importante: a ferida ou trauma clama por reparação, por isso que mesmo que silenciosamente ela se retroalimenta, atravessa as gerações e pode eclodir mesmo décadas de silêncio.

O grupo caraterizado pela direita é um grupo  peculiar pois é uma amalgama de feridas que condensaram em torno do símbolo do antipetismo, por isso é um grupo heterogêneo. Assim, podemos pensar nessa diversidade pelas feridas tão distintas sob duas categorias: a perda de privilégios e sentimento de traição.

A categoria de “perda de privilégios” é complexa, pois compreende desde grupos que, ao longo das últimas décadas, tiveram perdas financeiras, perda de status social associado a diminuição da desigualdade; perda de influência por parte de grupos religiosos que perderam influência e hegemonia moral sobre sociedade, especialmente associado a aquisição de diretos por minorias (como o casamento igualitário) e diante da possibilidade de mudança de legislação em relação ao aborto.

A outra categoria compreende o sentimento de traição, que está associado às denúncias e a condenação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva por corrupção. Isto porque, muitos que aderiram ao grupo da direita foram eleitores, beneficiários das políticas sociais do Governo Lula, contudo, com as denúncias e a condenação (associadas a não haver uma autocrítica do partido) fez com que eleitores se sentissem traídos, na confiança e esperança que o PT e o ex-presidente significassem mudança. O sentimento de traição alimenta em larga escala o “antipetismo”, consistindo um dos aspecto mais fundamentais para a integração do grupo apoiador do candidato Bolsonaro.

Por outro lado, o grupo representado pela esquerda, possui características históricas associadas as classes menos favorecidas, as feridas sendo associadas a exploração e desvalorização do trabalho, exclusão social (saúde, educação e direitos), visibilidade e liberdade de expressão. Essas feridas históricas encontraram no discurso de justiça social e avanços de direitos ao longo dos governos petistas, proteção e representação.

Ao compreender as feridas podemos entender a personificação defensiva do espírito grupal, quer na figura do guardião/protetor ou na figura do vingador do grupo. Nessa perspectiva, o guardião ou protetor personifica o desejo de manutenção do grupo, sobrevivência e continuidade. O vingador personifica o resgate do grupo, uma busca de reparação pelo trauma vivido ou uma restauração do grupo.

Quando analisamos as três situações, fica mais clara a dinâmica desses grupos, compreender os afetos exaltados, a dissociação entre a realidade, discursos e valores pessoais; e a tolerância notícias falsas.

Jung, culpa coletiva e alteridade

Diante da polarização, da exaltação dos afetos, da agressividade, e do amplo sofrimento psíquico que vemos em todos os grupos e na população podemos nos perguntar: Como lidar esse fenômeno?

Ao final da segunda guerra, Jung escreveu um texto chamado “Depois da Catástrofe”(1945), onde introduz uma noção importante que ele chamou de “culpa coletiva”, que é uma modalidade da culpa psicológica diferente da culpa jurídica ou moral, isto é, da culpa por um fato objetivo, mas antes uma identidade psíquica, isso porque Jung compreendia que o ser humano

não vive longe dos demais e que o seu ser inconsciente se acha ligado a todos os outros homens, então um crime nunca pode correr de maneira isolada como pode parecer à consciência. Ele acontece num âmbito bem mais vasto. (…) PLATÃO já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. A indignação e a exigência de punição se levantam contra o assassino e isso tanto mais violenta, apaixonada e odiosamente quanto mais ferver a chispa do mal dentro da própria alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram (JUNG,1988, p.20-1).

Sob essa compreensão, unidade inconsciente faz com que todos tomem parte dos eventos que os envolvem. Tomamos parte na medida que os eventos nos afetam, nos tocam. Reagimos inconscientemente no corpo, nos afetos, conscientemente podemos condenar, apoiar ou nos omitir. A indiferença não é uma opção psíquica. Em seu aspecto mais fundamental a culpa coletiva expressa uma solidariedade psíquica. Desse modo, para Jung, a culpa coletiva não visa a punição, mas, especialmente a confissão e compensação. Diante do crime, da violência e das atrocidades que desumanizam as vítimas, nos levam a desumanizar os agressores – nomeando-os são monstros, loucos, doentes. A desumanização ou objetificação é uma forma de afastarmos a “culpa coletiva” ou “responsabilidade coletiva” não individual, mas da sociedade que falhou em proteger as vítimas. Acusar, julgar e distanciar dos fatos é uma forma de não assumir a responsabilidade com o outro ou com a coletividade.

E não falamos de impunidade, a culpa coletiva não exime o indivíduo, mas possibilita uma mudança ou transformação coletiva.

Todos nós podemos identificar esta sombra de que emerge o homem de nosso tempo. Não precisamos atribuir a máscara do demônio ao alemão. Os fatos falam uma linguagem bem mais clara e quem não pode compreendê-la não pode ser ajudado. O que fazer com essa visão pavorosa é algo que cada um deve descobrir por si mesmo. Na verdade pouco se ganha em perder de vista a própria sombra ao passo que o conhecimento da culpa e do mal que habitam em cada um traz muitas vantagens. A consciência da culpa oferece condições para a transformação e melhoria das coisas. Como se sabe, aquilo que permanece inconsciente jamais se modifica e as correções psicológicas são apenas possíveis no nível do objeto (JUNG, 1988, p. 36).

Dessa forma, o que vemos na polarização política no Brasil, movida pelos complexos culturais, é a desumanização do outro. Isto é, o outro se torna um objeto, não é percebido como igual, uma pessoa, se torna veículo ou símbolo de uma ideologia a ser combatida – o então amigo ou familiar se torna “fascista” ou “comunista” – objeto de ódio ou temor.

É importante esclarecer que não falamos de uma cúpula partidária ou de quem dá forma ao ato violento atacando as pessoas, nem daqueles que personificam o discurso de ódio contra minorias legitimando a violência, tirando proveito do sofrimento coletivo para benefício próprio. Falamos de pessoas, amigos, colegas de trabalho, familiares e de pacientes que chegam a nossos consultórios.

Passando a tempestade ou “depois da catástrofe” reconhecer o nosso próprio ódio e medo é um passo fundamental para perceber o outro como humano. A noção que Jung insere com a culpa coletiva é do reconhecimento de nossas sombras para não apontarmos o dedo, para não diminuirmos o outro – acirrando a polaridade.

Somente pelo reconhecimento de nossas próprias sombras, da culpa coletiva, da humanização do outro, da existência do grupo que se opõe ao que me identifico e do sofrimento desse grupo (ou das pessoas desse grupo); é que conseguiremos integrar a alteridade necessária ao diálogo, o símbolo necessário para superar a divisão.

Na alteridade reconhecemos não somente o outro, mas a nós mesmos. Depois das eleições teremos de lidar com a desilusão, com o medo e a resistência. O desafio de tecer novos laços afetivos que possibilitem reconstituir indivíduos, famílias e grupos divididos por essa polarização. Reintegrar a alma brasileira dilacerada ao longo dos anos pelo processo político.

O resultado da eleição do próximo dia 28/10/2018 nos confrontará com  mais uma etapa da polarização do país. Assim, a consciência da divisão nos coloca diante do fato de que independente de quem seja eleito, psiquicamente, todos somos perdedores.

REFERÊNCIAS

HENDERSON, J. L.. The cultural unconscious, In Shadow and self: Selected papers in analytical psychology. Wilmette, IL: Chiron. 1990

SAMUELS, A.  Psique Política. Rio de Janeiro: IMAGO, 1995

JUNG, C.G. Psicologia do Inconsciente, Petropolis: Vozes, 1999.

JUNG, C.G. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1988.

KLIMBES, Samuel, L. . Cultural Complexes and Collective Shadow Process. In: BEEBE, J. (org). Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 211-234). Canadá: Daimon, 2003.

SINGER, T. Cultural Complexes and Archetypal defenses of the group spirit. In: BEEBE, John. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 191-211). Toronto: Daimon, 2003

SINGER, T, & KAPLINSKI C. “Cultural Complexes in Analysis in STEIN, M.(org)Jungian Psychoanalysis: Working in the Spirit of C.G. Jung, Chicago: Open Court Publishing Company,. 2010.

TRISTÃO, K.G. Capsij como lugar de cuidado para crianças e adolescentes em uso de substâncias psicoativas (Tese de doutorado), Programa de Pós-graduação em Psicologia UFES, Vitória, 2018. Disponivel em:  http://repositorio.ufes.br/jspui/bitstream/10/9113/1/tese_9223_TESE%20Kelly%20Guimar%C3%A3es%20Trist%C3%A3o.pdf


[1] Fabricio Fonseca Moraes é psicólgo clínico, especialista em Teoria e Prática Junguiana (UVA), especialista em Psicologia Clínica e da Familia (Saberes), Coordenador de Grupos de Estudos e Diretor do CEPAES (Centro de Psicologia Analítica do ES).

[2] Kelly Guimarães Tristão é psicóloga clínica, Doutora em Psicologia – UFES, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA), Professora Universitária , Diretora do CEPAES (Cenro de Psicologia Analítica do ES)

[3] Confira McGUIRE, William., ; HULL, R. F. C., C.G. Jung: Entrevistas e Encontros; Ed.Cultrix, São Paulo, 1982

[4] who were deeply wounded and limited by the charges of anti-Semitism against Jung and his followers. After World War II and the Holocaust, few wanted to take up the subject of “national character” or cultural complexes for fear of being tainted by  allegations of discrimination or, far worse, of contributing to justification of genocide.

[5] an area of historical memory that lies between the collective unconscious and the manifest pattern of culture [and] has some kind of identity arising from the archetypes of the collective unconscious, which assists in the formation of myth and ritual and also promotes the process of development in individuals. (p. 103)

[6] “these negative aligenments truly form an “axis” in the sense that a direct line or conection is drawn between the daimons o fone group, protecting their sacred center, and the daimons of a rival group, protecting their sacred center. Such negative alignments create the condictions for eruption of incomprehensible violence, destruction and impulse to destroy. By making the link betweein defenses in one group and the demonic defenses of another, they form, most potently, the conditions  in the cultural unconscious for the wholesale emergence of evil, and that, in the cultural unconscious, is the true “axis of evil”.

[7] Historicamente, pois, não foi um discurso de campanha, mas presente ao longo da carreira política do deputado.

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