“a interpretação psicológica (já preparada pelos alquimistas) conduz à ideia da totalidade humana. Esta ideia tem primeiramente importância terapêutica, porque pretende apreender por meio de um conceito o estado psíquico resultante do lançamento de uma ponte para transpor uma dissociação, a saber, a distância entre a consciência e o inconsciente.”
Jung, Mysterium coniunctionis
Um tema pouco falado na psicologia analítica é a interpretação, para alguns esse tema é quase uma “heresia”, pois insistem de forma quase solene e doutrinal “Jung não fazia interpretações”. Enfim, não entraremos nessa discussão infrutífera, pois nos textos de Jung o termo “interpretação” aparece livre dos preconceitos(como vemos na epigrafe), diferente do que alguns alimentam. Essa “polêmica” tem relação com fato de haver uma separação da clínica com teoria. Isso ocorreu especialmente porque Jung não deixou escritos sobre técnica analítica, frisando basicamente seu método dialetico e fundamentalmente e a amplificação, justamente para evitar que a análise deixasse de ser uma experiência singular entre analista-paciente e se fixasse em perspectivas teórico-doutrinárias.
Não obstante, muitos analistas buscaram delimitar aspectos da clínica e da relação terapeutica que poderam ser descritos como “técnica analítica junguiana”, na medida que em servem como uma referência geral, um nome que possibilita que o analista compreenda seu trabalho – na medida que o exerce em sua particularidade e na relação com o analisando.
Parte da dificuldade em trabalhar a interpretação na psicologia analítica está em definir o que é a interpretação. Lambert, faz uma referência etimologica importante que nos ajuda a pensar a importância do termo “interpretação” nos diz que
Partridge, em Origens, demonstra a derivação da palavra interpretação” do latim pretium que significa “preço”, com paralelos em louvar, precioso, apreciar e depreciar (1958, p. 525). Uma interpretação refere-se ao trabalho de um negociador, intermediário ou de um agente comissionado. Presumivelmente, os analistas são, de alguma forma, tudo isso. Eles descrevem e negociam entre as várias partes da personalidade do paciente e, em discussão com o paciente, atribuem-lhes peso ou valor entre, por exemplo, as suas complexidades e as suas simplicidades, o seu ego e o inconsciente, o ego e o self; etc. Isto também se aplica à transferência do paciente e a outras relações interpessoaisi (LAMBERT,1981, p45)
O papel do analista como um mediador, que observa, que entra em contato com o inconsciente do paciente, auxiliando no reconhecimento e integração de conteúdos importantes – que o paciente julgava sem valor. O investimento de energia do analista, possibilita que o paciente acolha o valor sua história, de seus conteúdos e seus valores para viver a individuação. Ao interpretar o analista convida o paciente a olhar para si, de modo diferenciado. Promovendo a integração e dialogo interior.
Michael Fordham foi um importante analista que enfatizou clínica em sua obra, compreendendo a clínica a partir de seus próprios processos clínicos e não pela amplificação mítica/arquetípica. Acerca da interpretação ele afirmou
(…)este procedimento tanto conecta o paciente com seu passado de uma forma significativa e pode iniciar o processo de mudança para libertá-lo de ficar preso nele pelo resto da vida. (FORDHAM, 1974, p.XI tradução nossa)ii
Nessa perspectiva a interpretação se refere a intervenção feita junto ao paciente que possibilite o paciente integrar sua história, a qual podemos também nomear como passado, complexos, sombra ou inconsciente.
Com esse intuito a interpretação assume um papel importante no processo analítico por ser capaz propiciar o processo simbólico de transformação da atitude da consciência do paciente. Este processo, contudo, não deve ser compreendido como exercício teórico ou de imposição de uma teoria. Fordham apresenta alguns pressupostos interessantes para se pensar a interpretação, são eles:
(1) Uma interpretação é principalmente, mas não exclusivamente, um ato intelectual derivado da experiência de um analista.
(2) Conecta as afirmações do paciente que possuem uma fonte comum desconhecida pelo paciente. Então, quando o analista fala ao paciente sobre a fonte, ele faz uma inferência que vai além do material atual em questão.
(3) Para ser eficaz, uma interpretação deve ser organizada e foram feitas tentativas para definir a sua estrutura, por vezes de forma muito precisa. Ezrael (1952), por exemplo, propôs que nada poderia ser chamado de interpretação que não incluísse a palavra “porque”, para indicar a inferência do analista. Isso restringe demais o termo e, sem negar o valor de uma definição tão precisa, omite o elemento preditivo necessário ao considerar o efeito que uma interpretação terá sobre o paciente.
(4) A interpretação deve ter por objetivo ajudar o paciente a controlar a ansiedade, aliviar a culpa excessiva ou outras obstruções ao bom funcionamento da sua vida mental. Faz isso trazendo um processo ou estrutura inconsciente, para a relação com o ego, alargando assim o campo da consciência. Se isso não acontecer com frequência adequada, o procedimento analítico e, especificamente, a aliança terapêutica, será prejudicada e o trabalho contínuo de análise pode cessar.
(5) O valor interpretação está representado no afeto enraizado no inconsciente do analista inconsciente do analista. Isto fornece aquele elemento de espontaneidade que numa interpretação que faz toda a diferença na sua eficácia.
(6) A validade de uma interpretação só pode ser verificada na entrevista analítica. De acordo com esta proposição, o que o analista comunica ao seu paciente é essencialmente diferente do que ele sabe após a entrevista, ou pensa que descobre sobre um paciente quando fala com um colega, ou quando escreve um artigo ou livro em que o material de uma entrevista está a ser analisado mais do que aconteceu na entrevista. Qualquer descoberta que ele faça nestes contextos não é passível de validação no contexto analista-paciente porque está a ser dirigida a um público diferente; assim, uma interpretação só pode ser verificada em relação em relação aos destinatários. Não quero insinuar que as discussões fora das entrevistas sejam inúteis, que não servem para nada; podem esclarecer dados difíceis, mas o que se pensa não pode ser validado em relação ao paciente.iii(FORDHAM, 1986, 113-4 – tradução e grifos nossas)
A partir desses pressupostos podemos compreender a dimensão da interpretação pela visão de Fordham. Como resultante natural da relação analítica, a interpretação decorre da elaboração dos processos contratransferencias (que explicitam os aspectos afetivos e conteúdos incosncientes projetados no analista). Como a interpretação visa o restablecimento relação da consciencia ou inconsciente, integrando os conteudos que geram sofrimento. A interpretação sempre é validada pelo paciente, em seu processo simbólico e de transformação. Não importa o quão “brilhante” ou original seja a interpretação se não fizer sentido para o paciente, isto é, se não for validada pelo paciente, é inútil.
A interpretação é uma comunicação especial dentro do enquadre analítico. Como dito acima, a interpretação tem uma intenção (integrar processos conscientes e inconscientes), um objeto (que pode ser a transferência, um sonho, resistência, defesas, projeções, fantasias, etc…), um processo (que atende a relação dialética entre paciente e analista) que se manifesta sobretudo na linguagem verbal – mas, pode ter expressões não verbais.
Apesar da interpretação ser um processo racional, a sua expressão não deve ser uma “racionalização teórica ” ou intepretação é uma comunicação simbólica que se ajusta a realidade do paciente. Mark Winborn, falando sobre a interpretação nos diz
Uma boa interpretação, tal como um bom poema, começa muitas vezes com o algo familiar mas, ao longo do caminho, revela algo não visto anteriormente ou não pensado, ao mesmo tempo que cria algo novo na psique do paciente. Esta é a base poética da interpretação.
Uma interpretação eficaz exige que se escute o paciente como se escuta um poema ou uma canção – isto é, ouvir como as palavras se juntam (a sintaxe para além do o significado semântico), a forma como as metáforas são transformadas e manipuladas, e como os poemas e as canções que nos cativam são aqueles que não só nos falam mas também nos surpreendem de alguma forma. (WINBORN, 2019, p.46 – tradução nossa)
A interpretação é uma metafora, um análogo possível ao conteúdo inconsciente que possibilita que a emergência do símbolo. Na interpretação busca-se apresentar o paciente a si mesmo. Dessa forma, é sempre uma sintese, uma criação conjunta. A linguagem da interpretação é uma ponte simbólica do individuo para ele mesmo, sendo essencial que contenha abertura para o novo, não sendo taxativa, racionalista ou teórica.
Como a interpretação emerge na relação analítica, ela precisa ser considerada como muita atenção pelo analista para não gerar interpretações inoportunas, inadequadas ou equivocadas. Winborn sugere que modelo de reflexão
Outro modelo de organização que considero útil são os quatro W’s – [what, where, When, Why] o que, onde, quando e porquê- que é adaptado de um modelo desenvolvido por Riesenberg-Malcolm (1995). A autora propõe três fatores centrais a serem considerados pelo analista durante o processo interpretativo que pode ser resumido como “o quê”, “onde” e “quando “que formam a lógica por detrás de uma interpretação. Considero benéfico considerar o modelo de Riesenberg-Malcolm de forma mais alargada do que ela o apresentou, e acrescentei acrescentei uma área adicional de enfoque – nomeadamente o “porquê”. (WINBORN, 2019, P.90-1 – traduação nossa)
Esses quatro elementos são muito úteis diante da possibilidade da interpretação. Vejamos cada um:
O quê – Segundo Winborn, indica o foco da interpretação, o que será interpretado? Poderia ser a trnasferência, a contratransferência, a relação com um complexo, um processo de defesa, resistência, um simbolo, um sintoma, um sonho, tema arquetípico recorrente.
Onde – Se refere a localização da preocupação do paciente, seja relacionado ao próprio paciente (dentro de si mesmo), ao analista ou na relação entre analista e paciente. Assim, pode partir do ponto de vista subjetivo do paciente, do percepção do analista ou intersubjetivo.
Dependendo do assunto da interpretação, ela pode ser formulada a partir da auto-perspetiva do paciente, a perceção que o paciente tem de mim, a perceção que o paciente tem de outra pessoa importante, ou a preocupação do paciente com o que está a acontecer numa relação, incluindo a sua relação comigo. Por exemplo, um paciente que se sente pouco atraente pode estar mais pode estar mais preocupado com a sua auto-perceção do que com o fato de eu o ver como pouco atraente.Para que uma interpretação que envolva o sentimento de falta de atratividade do paciente seja eficaz, seria importante focar a interpretação apenas na auto-perceção do paciente e deixar de fora outras perspectivas possíveis. Essa interpretação pode focar-se em como surgiu o sentimento de falta de atratividade ou quais os factores que mantêm essa auto-perceção. (Winborn, 2019, p. 91 – tradução nossa)
Quando – Se refere o momento em que se oferece a interpetação, isto é, da disponibilidade ou receptividade do paciente a interpretação. “O tempo de uma interpretação é baseado na experiência, julgamento, intuição, conhecimento do paciente e conexão com a contratransferência.”(ibid, p. 91-2 – tradução nossa) A interpretação pode ser imediata ou levar anos para ser apresentada. Devendo o analista se perguntar quando é apropriado oferecer a interpretação, tanto quando surge para o analista e quando paciente terá recepitividade para receba-la.
O porquê – Este é o elo de ligação entre todos os elementos anteriores. É se questionar se a interpretração é necessária, se atende as questões que o paciente traz para análise e se com ela o processo poderá avançar.
Esses quatros elementos ajudam na reflexão, na organização e na comunicação com o paciente. Naturalmente, o processo de elaboração da interpretação depende da capacidade do analista estabelecer uma relação dialética tanto com o paciente quanto com seus próprios conteúdos internos. A capacidade de estabelecer essa relação de dialética interna, possibilita perceber o que é percebido por seus orgãos sensoriais, atos falhos, emoções, afetos, suas fantasias e imagens que emergem a partir de sua relação com o paciente. Para a tanto é importante abrir um espaço interno, sem julgamento que possibilidade que os processos inconsciente do próprio analista se manifeste como resposta ao paciente.
O processo interpretativo envolve um variáveis que contribuem para o processo: teoria analítica, intuição, sentimento, influências inconscientes influências inconscientes, as personalidades do paciente e do analista, e o campo intersubjetivo constituído pela díade analítica. No entanto, cada uma destas variáveis requer uma metodologia para estruturar a sua utilização.(…) A noção de ciclo de interpretação sublinha igualmente a ideia de que nenhuma interpretação existe isoladamente. Cada interpretação é uma pequena peça de trabalho psicológico psicológica no contexto narrativo mais alargado de uma análise; cada uma delas contribui potencialmente para para o movimento progressivo da psique em resposta à situação analítica. (WINBORN, 2019, p.51-2)
Winborn (2019) sugere compreender que para além de “um ato analítico” a interpretação seja compreendida como o processo interpretativo, que inclusive possa ser compreendido em partes, como fases ou passos, ressaltando os diversos aspectos do processo interpretativo. Os quatro aspectos/fases seriam:
Observação confrontativa – Consiste em indicar ou chamar a atenção do paciente para um ato, padrões de comportamento, afeto, respostas para as quais o paciente possa não estar consciente. O “confronto” nada mais é que colocar esse conteudo diante do paciente. Um exemplo, seria “eu tenho percebido, que sempre que você fala da sua mãe você arregala os olhos e se encolhe na poltrona”. Uma carateriste do confronto é não ir além do que é apontado. é apresenter o objeto, é apresenter e permitir que o paciente sinta, perceba e entre em contato com esse fato que se faz notar ao analista. Uma vez conscientizado, naturalmente haverá um movimento interno no paciente que buscará o sentido/significado dessa vivência apontada pelo analista.
Inferência elucidativa – ou “esclarecimento por inferência” Este é um passo intermediario entre a Observação confrontativa e a interpretação. Seu objetivo não é explicar, mas estabelecer uma possivel relação entre algo manifesto (sintoma, comportamento, afeto, etc…) com algo que vai para além do mesmo, indicando outro movimento interno. Contudo, sem estabelecer uma explicação. Por exemplo, após um paciente, sofria com o execesso de controle dos pais, se dar conta que conseguiu fazer suas primeiras escolhas por si mesmo, pode-se apontar “você parece espantado com a autonomia que você está ganhando”. É importante considerar que as inferências elucidativas assim como as observações confrontativas se sucedem mutuamente, em meio ao dialogo do analista com o paciente, sempre permeada por perguntas que possibilitam essas expressões do paciente.
Interpretação – A interpretação é uma comunicação atribui um significado a algum conteúdo do paciente que antes não era percebido. Ou seja, a interpretação estabelece uma relação entre um conteúdo atual com sua matriz inconsciente – que geralmente está associado um complexo. Para tanto, é necessário compreender a história do paciente, compreender seus padrões, para poder trazer de forma completa, porém suscinta, uma interpretação que integre o momento atual com a história, produzindo um sentido simbólico que integre a vivência atual e sua história até então consciente. Em exemplo avulso de uma interpretação poderia ser “me parece que julgamento tão severo que você tem sobre as pessoas que se aproximam, é uma forma de você se proteger você da uma rejeição ou do sentimento de rejeição que você sentiu na sua adolescência”.
Construção – A construção remente a própria construção do processo anaítico, onde os padrões interpretativos conduzem a uma nova percepção de si, a uma nova expressão de relação interior e do Self. Assim, a construção está intimamente ligada ao processo de transformação e individuação.
A interpretação é uma expressão da função transcendente vivida na relação transferencial. Por isso, em última análise só fará um sentido imediato ao par analítico. Assim, o analista deve se ater a realidade psiquica do paciente, compreendendo que processo se dá no campo intersujetivo (transferêncial) co-criado pelo analista e paciente, sem se fixar em premissas teóricas e significados rigidos.
A análise produz sempre uma certa indeterminação, onde não dá para se fixar numa ideia de “certo e errado”, o foco é a individuação e a transformação da personalidade. Esta transformação só é possivel quando sustentamos a tensão entre o “saber” e do “desconhecido”, vivenciando e integrado o “desconhecido” através da experiência simbólica e afetiva do Self.
A interpretação é um ato analítico fundamental, pautado na ética e no processo de individuação do analista e visando a individuação do analisando.
Referências
FORDHAM, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974.
FORDHAM, M. Jungian Psychoterapy – A study in analytical psychology, London: Maresfield, 1986.
LAMBERT, K, Analysis, Repair and Individuation, London: Academic Press, 1981.
WINBORN, M. Interpretation in Jungian Analysis, New York: Routedge, 2019.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi
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