Nota: Este texto foi escrito a partir da palestra realizada no encontro do CEPAES “Amplificando Jung: A clínica Junguiana das Depressões” de 30/11/2024.
A depressão foi declarada pela OMS o Mal do Século XXI, assim como a melancolia foi concebida como o Mal do Século XIX. O Século XX foi inicialmente marcado pela melancolia, mas ao decorrer do século, cedeu espaço à depressão. Em nosso cotidiano, a depressão se tornou um termo tão coloquial que,com frequência, vemos sendo usado sinônimo de tristeza.
Para o clínico, pensar a depressão é pensar a clínica da depressão, compreendendo seus aspectos psicodinâmicos, variações e possibilidades – para além da perspectiva descritiva vigente na psiquiatria.
Um vislumbre da depressão no mito e religião
Apesar de ser descrita no século XIX, o processo depressivo sempre circundou a humanidade. De forma bem resumida, gostaria de fazer três alusões à depressão retratadas nas narrativas míticas e religiosas.
Na mitologia grega, temos um momento mito de Deméter onde, após o rapto de Kore, ela sai a vagar pela terra, por 9 dias e 9 noites – sem comer, beber, dor, ate encontrar com Hécate. Hécate levou Deméter a Hélio, que lhe revelou o acontecido. Deméter vaga até chegar a Elêusis, assumindo a forma de uma mulher idosa, e veio a se tornar babá do príncipe recém-nascido, ao qual tentou tornar imortal. Após ser descoberta e se revelar como Deméter, ordena a construção de um templo e se recolhe, tornando-se reclusa, trazendo longo ano de fome à terra, até que Zeus intervém junto a Hades, possibilitando o reencontro com Perséfone.
No mito grego, a perda da filha, uma experiência de luto fez com que Deméter se tornasse errante, triste, sem se alimentar, sem dormir, reclusa e indiferente às suas “funções”, trazendo infertilidade e fome à terra.
Na tradição judaico cristã, o profeta Elias, uma das figuras mais importantes do antigo testamento, atravessou um quadro depressivo (comentamos extensivamente no texto Revisitando o texto Depressão, Preconceito e Elias” ). Na narrativa bíblica, após protagonizar a disputa que levou ao milagre do fogo descer do céu, comandar o massacre dos 450 profetas de Baal, Elias esperava uma conversão do povo de Israel que não aconteceu,- pelo contrário, ele foi sentenciado à morte pela Rainha Jezabel. Com medo da morte, ele foge para o deserto, caminha longamente, e à sombra de uma giesta ele para e, sem comer nem beber, desejando a morte, ele ora e pede que Deus lhe tire a vida e dorme. Deus envia um anjo que ordena que ele coma e beba, para seguir seu caminho. Ele chega ao Monte Horebe (o mesmo que Moisés recebeu as tábuas da lei), entra em uma caverna e aguarda, após Deus se revelar, ele retorna ao seu caminho e cumpre o que lhe fora ordenado.
Nesse recorte, temos que a frustração vivenciada por Elias o leva à uma situação condizente com o que vemos no quadro depressivo com o isolamento, alteração no sono e alimentação, desejo de morte.
Na Alquimia, nigredo é a fase mais destrutiva que representa sobretudo a derrota do ego, a redução e humilhação. Esse processo leva consideração de si e a relação com a realidade que é superior. Nas diferentes operações alquímicas pertencentes a nigredo o confronto com o limite e com a realidade superior, trazia ao alquimista o sentimento de esvaziamento e desesperança. A busca pelo conhecimento, pela pedra filosofal passava pelo trabalho solitário, frustrante e continuo que muitas vezes passava pela depressão, como muitas imagens retratam.
A depressão na psicologia analítica
Na obra de Jung há algumas menções à depressão mas sem uma definição, delimitação ou conceituação – da mesma forma, grande autores junguianos abordam o tema de diferentes formas, no geral seguindo o modelo descritivo de Jung, que podemos apontar quatro categorias gerais:
- Dinâmica Energética: A depressão seria a manifestação ou resultado de uma regressão da energia psíquica, isto é, a energia é recolhida ao inconsciente, ficando como se represada, gerando esvaziamento da consciência e o empobrecimento simbólico. Essa perspectiva é a mais descritiva e aberta às possibilidades de pensar as dinâmicas do inconsciente – sendo a base, associada a todas as outras.
- Compensação: A depressão pode indicar uma atitude compensatória do inconsciente frente à atitude unilateral da consciência. A unilateralidade da atitude da consciência pressupõe uma negligência em relação ao inconsciente, que mobiliza a energia no inconsciente a fim de equilibrar a dinâmica psíquica. A partir dos símbolos (sonhos, sintomas) pode-se vislumbrar tanto o caminho da energia, como qual complexo ativado e qual a atitude consciente compensada.
- Alienação do eixo ego-Self: A alienação é um estado de estranhamento e afastamento da relação do ego com o Self. É um termo inserido por Edinger para descrever o conflito entre a consciência e o inconsciente. No estado de alienação, o ego distanccia e se torna incapaz de se relacionar de forma saúdavel, criativa e nutritiva com Self.
- Estratégia adaptativa e individuante: A depressão está associada ao processo de individuação, com a retirada de energia da consciência, possibilitando uma adaptação mais adequada às mudanças interiores, potencializando os processos arquetípicos do desenvolvimento que estariam por vir, trazendo a atenção aos processos interiores do Self.
Obviamente, não há como negar a importância da perspectiva clássica acerca da depressão. A partir desses fatores, temos uma descrição do processo (dinâmica energética), causas (compensação e alienação do eixo ego-self) e objetivo (movimento de individuação). Haveria ainda a possibilidade de considerar a depressão como uma expressão legítima da alma, não sendo pensada no campo da psicopatologia, mas precisando e revista e reimaginada – indo mais próximo da psicologia arquetípica.
Uma perspectiva psicodinâmica
Para compreender o processo da depressão na clínica é importante ampliarmos nossa percepção em direção à perspectiva psicodinâmica, que complementa a perspectiva descritiva. Nessa aproximação, vamos utilizar do pensamento da psicanalista Marion Minerbo que nos chama atenção à depressão a partir de sua diversidade de manifestações, pois “podemos reconhecer infelicidades diferentes produzidas por núcleos inconscientes distintos. Estes irão se manifestar na transferência com características próprias e exigirão estratégias terapêuticas específicas” (MINERBO, 2020).
Nesse sentido, Minerbo nos convida à uma leitura da depressão a partir de núcleos inconscientes de infelicidade, dos quais depreende os três tipos de depressão, a saber: a) a depressão com tristeza, b) depressão sem tristeza e a com melancolia. A descrição feita por Minerbo é muito útil para pensarmos os processos dinâmicos pela psicologia analítica.
a) A depressão sem tristeza
Minerbo descreve a depressão sem tristeza como uma categoria que se esquiva ao diagnóstico médico, ou seja, no geral não é diagnosticada, pois o sofrimento está dissociado do significado. Assim, Minerbo descreve a depressão sem tristeza:
Há um tipo de infelicidade difusa, muito próxima do tédio. A experiência subjetiva não é propriamente de tristeza, mas de vida vazia, estéril, burocrática, sem criatividade psíquica, colada à concretude das coisas. Nesse contexto de pobreza simbólica o futuro está bloqueado pela incapacidade de criar um ideal a ser investido. (…)
Clinicamente, o núcleo inconsciente pode estar menos ou mais tamponado (compensado) por defesas eficazes.(…). A tristeza está ausente porque o sujeito se cortou de sua vida psíquica, e o sofrimento foi “solucionado” pela via somática.
Proponho ampliar essa ideia para os quadros em que a pessoa também se amputou de sua vida psíquica, mas em vez de somatizar, usou defesas comportamentais: adições, compulsões, transtornos alimentares, hiperatividade, violência, perversões. Essas pessoas não procuram análise por estarem deprimidas, mas por causa dos sintomas mencionados. De modo geral, sentem que “algo” não vai bem em sua vida, e descrevem, à sua maneira, o que chamei de infelicidade difusa. Reconhecemos aí a angústia branca descrita por Green.” (MINERBO, 2020, p.162-3)
A exposição de Minerbo nos auxilia a compreender quadros complexos onde o esvaziamento da vida se manifesta sem se caracterizar propriamente a depressão como diagnóstico, colocando o profissional em dúvida. Isso é especialmente válido quando falamos de casos limites ou limitrofes que apresentam uma organização psíquica peculiar, mesclando elementos de defesas neuróticas e psicóticas. Isso é importante pois são pacientes que chegam à análise em função de defesas comportamentais ou conflitos relacionais. Um aspecto marcante nesses casos é literalidade e superficialidade dos relatos apresentados por esses pacientes, como se não houvesse um mundo interior.
Minerbo aponta esse modo como esses pacientes vivenciam a si mesmos, a realidade exterior como característica da predominância do pensamento operatório – que é próximo ao que Jung descrevia à unilateralidade da atitude da consciência. Acerca do pensamento operatório, Malagaré afirma
O pensamento operatório é um pensamento consciente destituído de subjetividade e desejo, sem ligação com o fantasiar ou o simbolizar, como se tivesse perdido a ligação com a fonte pulsional. Um pensamento de sobrevivência. Esse pensamento está submetido ao “de fora”, voltado para a realidade exterior, ligado a coisa s e não a conceitos abstratos. Esse conceito sugere precariedade da função psíquica, indicando um processo de investimento de nível arcaico. (MALAGARÉ, 2020)
Podemos encontrar a similaridade da “depressão sem tristeza” com a teoria junguiana do trauma descrita Donald Kalsched. As experiências traumáticas vividas (agudas ou crônicas) que abalam o ego fragilizando-o. Este, incapaz de lidar com essas vivências que ultrapassam sua capacidade de elaboração, ativa as defesas arquetípicas, também chamadas de defesas do Self. Essas são defesas primitivas, basais, que buscam proteger o Self da devastação da experiência traumática, neutralizando a percepção da experiência, utilizando mecanismos dissociativos, e assim o atacando os processos vinculares (internos e externos), gerando uma profunda dissociação que afeta a capacidade criativa e relacional do individuo, impedindo o desenvolvimento da individuação. Acerca da dissociação, Jean Knox comenta que
A dissociação atinge o coração desse processo fundamental pelo qual se desenvolvem novos significados e novos simbolismos, impedindo o reconhecimento da semelhança e da diferença entre um novo evento e a experiência da passado, entre o conhecimento consciente, explícito e inconsciente, implícito, entre cognição e emoção e, por fim, entre o eu e o outro. Um sistema rígido de defesa é elaborado, impedindo qualquer expressão de agência. Essa negação de si mesmo ou a auto-agencia dos outros é um processo que se baseia em um ataque fundamental e de amplo alcance aos processos de criação de significado da mente humana, descritos por Bion (1965/1977, p. 54) como “vinculação” e por Jung (1970) como a função transcendente. Tanto a função transcendente quanto a e a vinculação descrevem a capacidade da mente de formar conexões entre os conteúdos mentais, e é essa e é esse processo fundamental de criação de significado que é inibido pela dissociação. (KNOX,2011, p.103)
A inibição defensiva da função transcendente, utilizando o termo de Knox, diminui tanto a capacidade de simbolizar quanto de elaborar símbolos, de modo que o indivíduo não consegue se relacionar com a matriz nutridora do inconsciente, que está protegida ou encapsulada pelos processos defensivos. Esse esvaziamento energético e de sentido coloca o paciente em uma existência repetitiva e longe da possibilidade de individuação.
Essa depressão é identificada através do campo transferencial, onde tanto o analista quanto paciente são confrontados com a desvitalização presente como pano de fundo, para além dos sintomas decorrentes das somatizações e defesas comportamentais. Se torna fundamental verificar a história do paciente, as defesas e a organização do ego . O pensamento operatório expressa as defesas ativadas desde a infância, mantendo as formas de sofrimento no nível pré-simbólico ou psicóide, não podendo ser representados ou “imaginados”.
(…) analista e analisando podem experimentar não apenas um esgotamento emocional, mas também estados que não podem ser considerados nem mentais nem físicos. Em vez disso, são um pouco de cada e são conhecidos de maneira mais pungente em um sentimento de dor que parece não ter limite. Muitos experimentam essa dor na região do peito, como um estado em que o Outro – pessoa ou Deus – está ausente. Não há nada além de uma agonia de pavor, uma experiência que beira uma não experiência e leva muitos a acreditar que estão, nesse terrível inferno interior, afligidos por sentimentos e percepções não assimilados de uma vida inteira. Esses estados não metabolizados ocorrem sem imagens, apenas com dor e terror perante sua aparente infinidade. Esse nível recorda a noção de Jung de que a psique se estende ao longo de estados delimitados pelo “nível psicoide”, um espectro definido e limitado por uma extremidade vermelha do processo instintivo e somático e uma extremidade violeta do processo mental e espiritual. (SCHWARTZ-SALANT, 2024, 93)
b) A depressão com Tristeza
A segunda categoria de depressão descrita por Minerbo corresponde à maioria dos diagnósticos de depressão que vemos no cotidiano clínico.
Outro tipo de infelicidade aparece como desempoderamento generalizado. A experiência subjetiva é de não dar conta da vida. Há grande dependência em relação a um objeto que funciona como muro de arrimo para o eu. Essas pessoas vivem as sujeitadas, com medo de perder o objeto e desmoronar. Por isso não têm autonomia psíquica suficiente para sustentar projetos, desejos, opiniões. O futuro está bloqueado porque não conseguem ser sujeitos da própria vida.(p 162) (…)
A depressão com tristeza ou narcísica se manifesta como desmoronamento do eu pela perda do objeto de apoio, objeto que estou chamando de muro de arrimo do eu (Bleichmar, 1983; Freud, 1914/1969c). A perda desse objeto lança o eu numa condição de impotência e desamparo.
(…)É nesse campo intersubjetivo que o sujeito se torna tão desempoderado e tão dependente do objeto, já que sua autonomia lhe foi sequestrada por suas (do objeto) necessidades narcísicas. Como resultado, sujeito e objeto precisam desesperadamente um do outro para não desmoronar.
O sujeito se deprime porque sua existência fica limitada a lutar para não perder o objeto do qual depende, e ao mesmo tempo lutar para se desvencilhar do objeto que depende dele.”(MINERBO, 2020, p. 163)
Na depressão com tristeza, encontramos similaridades com as concepções mais clássicas junguianas, compreendendo o esvaziamento energético, a compensação pela identificação projetiva e introjetiva associada aos complexos. Contudo, os apontamentos de Minerbo são fundamentais por fazer uma ponte sobre uma das principais lacunas deixadas pela teoria junguiana clássica: o ego.
Na perspectiva junguiana é comum falarmos da compensação em seu aspecto redutivo, quando a atitude do inconsciente visa mudar a atitude da consciência seja pela retirada da energia psíquica, pela formação de sintomas ou através de sonhos. Essa é uma forma de compensação, outra seria a compensação prospectiva na qual o inconsciente acrescenta ou sustenta a atitude consciência – essa compensação é perceptível nos sonhos e nos símbolos, especialmente do Self, que reorganizam a consciência. Nessa dimensão, Minerbo chama atenção para o fracasso do processo compensatório, onde o ego fragilizado perde seu elemento de sustentação.
A metáfora da Minerbo é fantástica, excepcional, onde a relação com o objeto se coloca como um “muro de arrimo”, e sua perda o ego “desmoronaria” deixando o indivíduo impotente e desamparado. Nesse cenário, pela perspectiva junguiana, podemos compreender tanto a identidade do ego quanto o complexo quando a projeção do complexo compensariam a imaturidade e deficiência adaptativa do ego. Em outro nível, temos um processo similar de identidade e projeção que envolvem imagens arquetípicas, em especial da Anima e Animus – amplamente descrita na literatura junguiana. Neste caso da perda do objeto é vivida como a “perda da alma”, expondo o vazio e fragilidade compensadas pelas dinâmicas arquetípicas. A depressão é resultado da insuficiência da compensação ou mesmo da ruptura da compensação pela perda do objeto.
As relações de co-dependência, os relacionamentos adoecidos podem ser enquadrar nessa perspectiva onde o paciente “sabe” que o relacionamento/objeto lhe faz mal, contudo não consegue se desvencilhar dele, que pode agravar o conflito interno a dimensões dramáticas. É necessário o amadurecimento do ego para ele possa lidar com a perda e enfrentar a realidade.
b) A depressão com melancolia
A terceira categoria apresentada por Minerbo é da depressão com melancolia, cuja vivência subjetiva é descrita como
Uma terceira forma de infelicidade aparece como autodepreciação. A certeza d e não ter valor para o objeto vem junto com a vergonha de ser e de existir, agravada pelo sentimento de culpa pelo próprio fracasso. A vivência subjetiva é de que nada adianta nada, porque nunca será digno e merecedor do amor do objeto. Aqui o futuro aparece bloqueado pela certeza de que nenhuma conquista fará brilhar os olhos do objeto (MINERBO, 2020,p. 162)
O sentimento ausência de valor, de fracasso e profunda autocrítica marcam essa vivência da depressão com melancolia. Nesta categoria também vemos uma profunda relação com a teoria junguiana do trauma, com a manifestação do sistema arquetípico de autocuidado como uma “voz interior” crítica e opressiva. Muitas vezes nos referimos à formulação de Kalsched associada a “trauma preococe”, pois é o enfoque de sua obra “O mundo interior do Trauma”, contudo as formulações são aplicadas em outros momentos do desenvolvimento em situações traumáticas como relacionamentos abusivos, burnout, transtorno de estresse pós-traumático, perdas significativas, dentre outras.
“Como se sabe, na depressão melancólica o super-eu odeia e critica o eu de forma cruel (Freud, 1917/1969b). Identificado a essa instância, o sujeito é tomado pela certeza de não merecer o amor do objeto, certeza essa que é primária, inabalável e refratária aos testes de realidade. “Simplesmente não sou o que deveria ser para merecer esse amor.”
Proponho considerar essa certeza como um microdelírio cuja função é dar sentido ao absurdo do desinvestimento pela mãe morta (Green, 1988), ou pior, ao investimento negativo por parte do aspecto paranoico do objeto (Minerbo, 2015).
A busca pela perfeição, tão comum nesses pacientes, é secundária, e revela a tentativa desesperada de merecer seu amor. “Se/quando eu for perfeito, ele me amará.” Quando essa esperança é perdida, mergulha-se na melancolia.(MINERBO, 2020, 163-4)
Nós junguianos costumamos ter uma certa resistência quando se fala de super-eu ou superego, que é um conceito clássico no campo psicanalítico, isso ocorre tanto por haver uma resistência a imagem de Freud, quanto por não termos um conceito exatamente correlato ao superego. Isso porque na cartografia junguiana da psique diferentes instâncias/conceitos abarcam as funções do superego, como a persona, os complexos parentais negativos, anima e animus, o sistema arquetípico de autocuidado (defesas do self), que internalizam a consciência coletiva, trazendo uma imagem idealizada para ego, com aspectos de moralidade. Do mesmo modo, internalização da autoridade parental e, em determinadas situações, todas essas instâncias podem mobilizar pensamentos e sentimentos críticos e opressivos em relação ao ego.
Quanto mais frágil ou imaturo for o ego, maior será a força dessas instâncias que o tornam o dependente, gerando divisões no ego, tornando-o incapaz de se relacionar com o Self. Edinger chamou esse estado de alienação do eixo ego-self
O Si-mesmo, na qualidade de centro e totalidade da psique, capaz de conciliar todos os opostos, pode ser considerado o órgão de aceitação par excellence. Como inclui a totalidade, ele deve ser capaz de aceitar todos os elementos da vida psíquica, por mais antitéticos que possam ser. O sentimento de ser aceito pelo Si-mesmo dá ao ego força e estabilidade. Esse sentimento de aceitação é o veiculado para o ego através do eixo ego-Si-mesmo. Um sintoma de danificação desse eixo é a falta de auto-aceitação. O individuo sente que não merece viver ou ser o que é. A psicoterapia oferece à pessoa que passa por isso uma oportunidade de enfrentar a aceitação. Em casos bem-sucedidos, essa experiência pode equivaler a um reparo do eixo ego-Si-mesmo que restabelece o contato com as fontes internas de força e de aceitação – o que deixa o paciente livre para viver e crescer. (EDINGER,1992 p. 69.)
A alienação do Self ou a ruptura do eixo ego-self pode ocorrer em diferentes momentos da vida, contudo, nos casos mais graves encontrar suas raízes na infância. Minerbo cita o “desinvestimento pela mãe morta”, essa é uma referência ao complexo da mãe morta descrito por André Green, que aponta a situações onde a mãe é impossibilitada de investir na criança – por estar num processo depressivo ou enlutada – essa ausência de investimento, de brilho nos olhos, se tornando um desinvestimento narcísico no ego. Contudo, o complexo da mãe morta indica uma falha fundamental na representação do Self, que tem na mãe o primeiro objeto, mantendo o Self em seu aspecto primitivo, pré-simbólico. Sem ter um campo relacional/emocional suficientemente bom, o processo deintegrativo do Self é prejudicado, afetando o desenvolvimento ego, que na ausência de representação saudável, se identifica com o vazio.
Essa perspectiva nos coloca diante do trauma precoce fundamental – que ao longo da vida levará à busca por aceitação, por não ter uma relação adequada com o Self transformacional A depressão com melancolia aponta para uma perda essencial do ego, que em sua incapacidade de afirmação ou autopercepção positiva se encontra sempre na busca pelo objeto transformacional, que lhe possibilite a sensação de integridade e totalidade. A busca pela “perfeição” ,por um lado, é a necessidade se sentir pertencente, de “estar em si mesmo”; por outro, a indica a busca pela totalidade, de se sentir integral.
Discutimos um pouco dessa temática no texto “Sobre o Complexo Materno – uma perspectiva desenvolvimentista” .
Considerações finais
A depressão é um termo que abriga muitas manifestações e formas de organização da psique que envolvem o empobrecimento simbólico e a regressão da energia psíquica. É através da relação transferencial que podemos vislumbrar o caminho percorrido pelo paciente em sua depressão e quais as possibilidades de desenvolvimento.
No trabalho analítico, encontramos no rêverie(vide o texto Função Transcendente ao Rêverie) um fundamento importante para trabalhar com pacientes que estejam comcapacidade simbólica prejudicada, como é o caso da maioria dos pacientes deprimidos, o rêverie é como uma janela através da qual podemos ver e acessar os conteúdos da transferência – assim como os conteúdos do analista mobilizados na contratrasferência. Deste modo, o rêverie está intimamente relacionado com a atitude simbólica do analista que torna possível a compreensão da contratransferência e viabilizar a integração dos conteúdos do paciente. Sobre a atitude simbólica Jung afirmou
Esta atitude que concebe o fenômeno dado como simbólico podemos denominá-la atitude simbólica. Só em parte é justificada pelo comportamento das coisas; de outra parte é resultado de certa cosmovisão que atribui um sentido a todo evento, por maior ou menor que seja, e que dá a este sentido um valor mais elevado do que à pura realidade. (Jung, 2012, p.480)
A partir de sua vivência simbólica, o analista pode emprestar suas imagens e símbolos que mobilizados pela transferência, que serão simbolizados pelo paciente. A própria atitude simbólica será introjetada pelo paciente, como uma forma de vivenciar seus próprios conteúdos que se tornaram manifesto pela análise.
As depressões são desafiadoras porque nos impregnam de vazio, de elementos pré-simbólicos transferidos pelo paciente e que drenam nossa energia. A atitude simbólica e o reverie nos possibilitam “ver” o campo transferencial, preencher “os vazios” e metabolizar elementos inconscientes e pré-simbólicos transferidos, dando continência, forma e sentido para que sejam simbolizados e compartilhados com o paciente, num longo processo de integração e amadurecimento do ego.
Referências Bibliográficas
EDINGER, Edward F. Ego e Arquétipo, SP, Cultrix, 1992
JUNG, C.G. Tipos Psicológicos, Petrópolis: Vozes, 2012.
KNOX, Jean, Self-agency in psychotherapy: attachment, autonomy, and intimacy, New York, W. W. Norton & Company, 2011. (ediçãodigital)
MINERBO, Marion. Depressão sem tristeza, com tristeza e melancólica. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 54, n. 4, p. 160-176, dez. 2020 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2020000400013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 nov. 2024.
MELGARE, Celso Perez. A psicossomática, laços da teoria de Pierre Marty e André Green. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 54, p. 131-139, dez. 2020 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372020000200013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 dez. 2024.
SCHWARTZ-SALANT, Nathan, O Mistério das Relações Humanas, Vozes: Petrópolis, RJ, 2024.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador de Grupos de Estudos Junguianos. Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
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