Em busca da Mulher Selvagem e o processo de individuação feminino: reflexões sobre o “Arquétipo da Mulher Selvagem” e a psicologia analítica 

Por Dra. Kelly Guimarães Tristão

A modernidade exige da humanidade uma postura frente à vida que nos afasta muito do contato com o simbólico, em especial, da mulher moderna, com todo o acúmulo de afazeres, papéis e cobranças, bem como medos e culpas. Tais exigências, com o trabalho, a maternidade, a sexualidade e a espiritualidade, promovem uma sobrecarga, o que dificulta ter um tempo para ter contato com os elementos do inconsciente, e também um contato com o mundo externo de maneira mais saudável. Nossas relações ficam muito prejudicadas com um todo. Daí essa necessidade como Jung traz em Vida Simbólica (2017b), que o ser humano precisa de símbolos, e precisa de símbolos urgentemente. Para nos ajudar nesse processo de manter esse contato saudável da consciência e com o inconsciente. 

Pensar no arquétipo da mulher selvagem é, antes de mais nada, pensar em estabelecer uma relação saudável com o inconsciente e com o mundo externo. Assim, ele aponta para uma função em nossa vida. É o chamado abrir a porta! Que é justamente esse processo de eu me permitir conhecer aquilo que está além do que eu conheço sobre mim na atualidade. A porta só vai se abrir do lado em que estou, sou eu que tenho que abrir essa porta para que eu entre e tenha o contato com esse desconhecido.   

Pode ser que isso exija de mim uma série de coisas. O abrir a porta é como entrar na Floresta, e eu vou ter que deixar coisas que eu tinha, coisas que eu era para trás. Então, o entrar na Floresta, o se abrir para esse desconhecido, algumas vezes nos trará desafios que talvez não estejamos prontos no momento para superar. Mas é preciso  começar a construir instrumentos, pra nos auxiliar a abrir essa porta, atravessar essa floresta, e aprender a lidar com o que pode encontrar no caminho. 

O “arquétipo da mulher selvagem” fala do relacionamento essencial com o mundo onde vivemos, e que para muitas pessoas foi soterrado. Foi soterrado pelas exigências, foi soterrado pelo machismo, foi soterrado pela culpa (moral ou religiosa). Foi soterrado por uma série de fatores. Então, é quase como se tivéssemos que desenterrar os ossos que estão ali (como no Barba azul), para que possa se construir carne (como na mulher esqueleto) e preencher essa carne de alma. O primeiro ponto de como que a gente faz isso, é perceber a existência da vida e desse momento de existência. 

Algumas pessoas não conseguem perceber sua existência, o próprio corpo, os próprios sentimentos, os próprios pensamentos, os próprios desejos. E quando se fala dessa compreensão, dessa vida, nesse momento, podemos recorrer à amplificação em relação com os Lobos. 

Pensar a relação “com os lobos” é pensar no elemento gregário, do se relacionar com o outro. Sabemos pela experiência que os nossos pensamentos, sentimentos e ideias não são facilmente legitimados, visto que quem legitima usualmente, como a Polly Young-Eisendrath  (1990) traz, é o homem branco, cis, com recursos econômicos e “reconhecimento social”. Como as mulheres não tem esse aspecto legitimado, é comum não se autorizar a muitas coisas. Daí se tem a importância de estar em grupo, de estar em grupos de mulheres, especificamente, para que nossos pensamentos e ideias sejam legitimados e para que a gente valide nossos sentimentos.  Eu preciso desse olhar do outro também pra me sustentar, para que eu possa me reconhecer. Enquanto um EU, enquanto um ser humano. Enquanto uma mulher! Não quando um homem diz o que eu sou.  Precisa dos grupos nesse processo. Precisa desse sentimento de pertencimento. 

Esse Sentimento de pertencimento, entendendo a partir da ideia de complexos culturais (Singer, 2003), é o que nos ajuda a lidar também com os elementos inconscientes que são parte do grupo, que às vezes chegam e trazem uma mobilização…e a gente não entende nada do que está acontecendo, mas precisamos entender. É o anseio que temos a gente acaba tendo por esse arquétipo da mulher selvagem, que acontece muito fortemente a partir do momento em que se encontra alguém que o vivencia. É o que nomeamos na perspectiva Junguiana, de humanização do arquétipo.  

Quando essa vivência básica de organização psíquica, ou seja arquetípica, é humanizada a partir da relação com outro ser humano, ou em uma instituição, ganha forma. Ele ganha presença. E nos identificamos com ele! Mas sendo arquetípico, ele é potência, ele existe em cada um. Mas como sabermos se existe, se nunca tivermos ciência, se nunca pudermos vivenciar?  Assim, é mais fácil quando se vivencia a partir do outro, quando esse outro traz essa expressão desse arquétipo. Neste momento, podemos tanto reconhecer como também ser tocado, ser afetado por ele. Então podemos ter a oportunidade de desenvolver melhor. (você pode entender melhor sobre esse tema nesse artigo) 

Sabemos que o arquétipo é um conteúdo do inconsciente coletivo, sendo assim, ele tem algo que fala da história, da evolução da humanidade. E nessa evolução existem elementos que nos aproximam. Assim como falamos que o nosso corpo tem uma história evolutiva, a nossa psique também tem uma história evolutiva.  

O arquétipo diz dos padrões mais basais de organização psíquica. São as formas. Como se tem reações, sentimentos, ideias relacionadas a uma mesma temática, e isso provoca na gente uma forma de se relacionar.  Depois que esse elemento se torna consciente, ele deixa de ser arquétipo. Assim, o que se tem acesso é uma representação arquetípica, que pode vir por meio da psique ou da matéria. O elemento arquetípico é psicóide. Ele é os dois (matéria e psique). Essa matéria, seja  corpo, terra, seja elemento da natureza,  como elementos da mulher selvagem vão ser expressos no nosso corpo, nos nossos ciclos, mas também na nossa psique. Então a gente não pode fazer uma distinção, é isso ou aquilo. Logo, isso fala desse elemento, desse arquetípico que é primordial e que não pode ser diferenciado. Matéria e psique, são as mesmas coisas.  

Dito isto, precisamos entender que não existe o “o arquétipo da mulher selvagem”. Nesses termos falamos de um conjunto de símbolos ou representações arquetípicas que se faz presente através da imagem da “mulher selvagem”. Como se popularizou o uso de “arquétipo da mulher selvagem”, vamos usá-lo como expressão ou força de linguagem, mas como representação arquetípica, ele aponta ou nos permite vivenciar o potencial do arquétipo em si, mas qual arquétipo se faz conhecer pela “mulher selvagem”?  Já, já vamos falar dele.  

Quando temos acesso à representação arquetípica da Mulher Selvagem teremos acesso às atitudes, comportamentos, que dizem respeito àquele arquétipo. Ela vai se manifestar na Natureza básica feminina, que vai assumir várias expressões em lugares diferentes do mundo, mas o terreno fértil é o mesmo. Desta forma, quando falamos dessa natureza básica feminina, enquanto representação arquetípica da mulher selvagem, precisamos compreender que esse “selvagem” não se trata de falta de controle, de impulso, mas pelo contrário, diz respeito à possibilidade de viver e  de ter uma relação com a vida de uma forma íntegra. Na perspectiva junguiana compreendemos o “ser inteiro”, que abarca os opostos: do bom e do mal! O sagrado e o terreno! Que precisam ser integrados também. Integrar nossa possibilidade de viver de forma na realidade inata e com limites saudáveis.  

Esses limites saudáveis, são importantes quando falamos da mulher selvagem. Não estamos falando de rituais, mas do aprendizado de lidar com outro, esse outro que é tudo o que é diferente do Eu. Seja o meu outro interno (conteúdos do inconsciente), seja com outro externo, que são as pessoas, a natureza, o trabalho, entre várias outras coisas. Assim, precisamos construir, enquanto ser humano, esses limites saudáveis, que tanto nos ajudam a entender quem somos, porque nos diferencia do outro. Como nos ajuda também colocar limite no outro, e não ser sobrecarregado com o excesso de contato com os objetos externos. Isso não é algo que é exclusivo à mulher, o arquétipo da mulher selvagem está presente em todo e qualquer ser humanos, seja na mulher, no homem e na pessoa que não se identifica nessa binaridade. 

Nesse sentido, o Jung (2017 a) aponta que o arquétipo é potência para todo e qualquer ser humano. No entanto, para as mulheres, esses limites saudáveis se tornam muito importantes, por conta de toda a história de limitações….as que as mulheres vivenciaram e vivenciam. Então as representações do arquétipo da mulher selvagem são também essas imagens que nos lembram quem nós somos! E o que a gente está representando!!! Nas estórias que os contos trazem, tem-se a mulher que vive desde sempre, a força espiritual, que se organiza e organiza a vida. 

Os nomes que cada uma delas tem nos contos e estórias vão trazendo a compreensão da representação desse arquétipo da mulher selvagem. Quando pensamos quem elas são e quem elas representam, falamos do inconsciente coletivo, falamos de herança, que tem um caráter evolutivo. Então fala da nossa história! Logo, a gente precisa retomar um pouco essa história. 

Em termos arquetípicos, falamos sempre de polos. Um arquétipo vai ter sempre polos opostos. O polo oposto à mulher selvagem é a deusa, logo, precisamos trabalhar, elaborar os dois aspectos. Essa selvagem, que fala desse terreno, desse biológico, desse corpo, mas também a deusa que fala desse elemento do sagrado. Neste sentido, quando nos prendemos somente a um dos elementos, estamos massacrando o arquétipo da mulher selvagem. Por outro lado, muitas vezes as vivências sobre o feminino se prendem muito ao aspecto das deusas, e nessa relação com esse sagrado, com essa deusa, negligencia-se uma compreensão da atualidade, dessa mulher que é história, mas que é atualidade também. Dessa mulher que é corpo, dessa mulher que se relaciona com outra. 

Para explanar um pouco nessa história do feminino, enquanto esse feminino terreno, podemos resgatar um texto de Rose Marie Muraro (2017), autora  Feminista Brasileira, na introdução do livro Maleus Malleficarum (O martelo das feiticeiras), que trabalha esse feminino enquanto inserido num coletivo.  

Segundo a autora, historicamente, o feminino é relacionado à Terra. Esse útero, é um útero sagrado, porque não se tinha uma compreensão de que o homem participava também desse processo de fertilidade, de desenvolvimento de uma nova vida. Era como se fosse fecundado pelos deuses, logo esse elemento sagrado do útero era muito forte. Poderia se falar, talvez da inveja do útero, porque só a ele cabia essa possibilidade do sagrado no corpo presente, algo que era atribuído somente às mulheres. Mas essa mulher também tinha outras características, como por exemplo, o conhecimento da agricultura que, segundo os historiadores, as mulheres, na realidade, começaram a entender um pouco melhor essa compreensão dos ciclos da agricultura, justamente porque podiam relacioná-los aos ciclos do próprio corpo, ao período de descanso, ao período de fertilidade, ao período de produção.  Esse feminino inicial, dessa mulher selvagem efetivamente fala também da relação, entre a vida e a morte. De saber que vai existir a morte, que vai levar alguma coisa, assim como vai vir a vida também. Além disso, tem-se também o papel da curandeira, desse cuidado, desse curar! Nesse processo, a gente entende esse feminino inicial, esse feminino selvagem. 

Assim, a história fala desses limites saudáveis que se estabelecem. Por exemplo, um trabalho que era suficiente para o cuidado de si mesmo e de uma parte do grupo, que não era algo que visava o exagero, o poder. Era um cuidado suficientemente necessário. Entendemos que não existe uma supremacia feminina, mas que uma relação desse feminino com o sagrado, com o equilíbrio, com o masculino, com os homens que também tinham funções importantes e fundamentais para aquela coletividade. Só que com o processo de escassez de Terra, de uma Terra produtiva, fértil, a humanidade foi desenvolvendo os domínios das caças grandes, a necessidade de poder, as questões relacionadas com as guerras, e consequentemente, o poder em relação ao grupo passa a ser medido pela força, não pela coletividade. Essa força passa a relacionar-se também a um processo de controle dos corpos, especialmente do controle dos corpos femininos, já que eles tinham a importância de gerar. Nesse momento, o gerar não possui mais a importância sagrada e passa a ser visto como a forma continuidade daquele homem. Temos então esses processos com rigidez e regras.  

Pra pensarmos em termos junguianos lançaremos mão de “A Grande Mãe” (2021) e “O medo do feminino” (2000) e como para enterremos a relação da psique à história. Neumann traz a compreensão de que a consciência vai sendo construída à medida que se tem contato cada vez maior com as regras, com os limites. Mas que no início tem-se um processo que ele chamava de arquétipo de primordial. Esse arquétipo primordial, existe antes de todas as separações possíveis. 

Inicialmente, quando a gente vai falar sobre a história dos povos, segundo Neumann (2000), temos o feminino, que tinha uma relação simbólica muito maior, que ia se estabelecendo a partir, especialmente, do contato com o próprio corpo, com as mudanças, com o ciclo, e com o inconsciente, porque o inconsciente está no corpo. O Inconsciente é esse feminino. Não o feminino entendido a partir da mulher, mas essa ideia do feminino que fala do contato com os deuses, esses elementos mitológicos e simbólicos. A evolução da história da consciência, vai partindo inicialmente de um dinamismo arquetípico muito marcado pelo materno, pelo cuidado desse materno e pelas questões simbólicas, para uma existência, uma presença muito mais forte de elementos do paterno, do patriarcado, que aqui vai ser representado por uma forma extremamente negativa. O dinamismo paterno por excelência pode ser negativo ou positivo, ele também é saudável. Mas o patriarcado fala de uma rigidez de limite, de regra, de uma rigidez no direcionamento para o mundo externo, de uma rigidez de objetivos. E não deveria ser assim. Segundo Neumann, esse paterno teme o feminino. Porque o estar em contato com esse feminino é você ter que parar para ter um contato consigo mesmo, e não estar o tempo todo se lançando para o mundo. Esse processo histórico da mulher selvagem, é representado também nessa compreensão da psique. Como essa psique vai se organizando no decorrer da humanidade. 

A mulher selvagem e a deusa, na realidade fala de um mesmo elemento, que é esse elemento do feminino. O Campbell (2004) aponta, que ao entender a cosmogonia, ou seja, o processo de criação do mundo, percebemos que 4 etapas. Na primeira etapa, fala-se de um mundo criado pela deusa mãe, de Gaia,  também a Nanã Buruku, um mito nagô, essa mãe Terra primordial, que trouxe e que proporciona esses elementos para a criação do homem. Essa etapa inicial dos mitos cosmogônicos vai sendo muito mais representada por essa criação a partir de um feminino. Numa segunda etapa, tem-se de um Deus mais andrógeno, não é masculino ou feminino. É uma energia que possua as duas características, masculino, feminino ou mesmo um casal. Como exemplo do hinduísmo Shiva, é a energia, energia criadora e a destruição, que juntos promovem a existência do mundo, assim como a destruição da nova existência. Na terceira etapa, tem-se um Deus macho, que toma o poder dessa deusa ou que cria o mundo sobre o corpo da deusa. A exemplo, a mitologia sumérica, especialmente Siduri,  que era  responsável pela criação  do Jardim das delícias. E  Gilgamesh a relega a uma posição inferior quando ele toma o poder dela. Na última etapas dos mitos cosmogônicas, o macho que cria um mundo sozinho, e como exemplo na mitologia cristã, temos o Javé. 

Paralelamente, na história da mulher terrena, da mulher selvagem, vai sendo substituída pelo patriarcado, pelo masculino, que controla e que domina os corpos, e as almas; e que tem domínio da cultura. O sagrado também vai fazendo esse processo, porque ele vai sendo essa representação da vida que está sendo construída, dessa história da humanidade que está sendo construída.  

Quando Neumann traz no livro “A grande mãe” (2021) a ideia do arquétipo primordial, ele vai entender que os arquétipos vão sendo humanizados à medida que a gente vai tendo contato com elementos da vida, com humano, a partir da relação com o outro. O primeiro arquétipo a ser humanizado é o materno, e depois que ele é humanizado, a partir dessa relação externa, ele é elaborado e integrado à psique. E passa a ter essas possibilidades a partir de cada relação humana que o indivíduo acaba estabelecendo. Então tem-se inicialmente é um todo que começa a ser percebido ao ser humanizado, a partir da relação com os dinamismos.  

Quando falamos do arquétipo feminino, abordamos primeiro os elementos mulher selvagem e da deusa, mas isso pode ser destrinchado. A Tony Wolf (1985), por exemplo, traz uma ideia dos 4 elementos do feminino: o materno, a amazona, a médium e a hetaira. Então, quando se fala dos arquétipos do feminino vem primeiramente a questão da mãe, mas é possível perceber no processo de leitura de Mulheres que correm com os lobos, que em cada um dos contos, vamos tendo a presença de um ou mais desses aspectos do feminino.  

Essa mulher selvagem que Clarissa  Pinkola Estés (1997) nos aponta, nada mais é do que o arquétipo do Self, expressado por esse feminino.  Porque o arquétipo de Self? Porque quando essa psique vai se organizando, falamos do arquétipo do self. Entendemos aqui que todos nós temos essa potência para organização, para a busca de uma totalidade. Logo, quando falamos da mulher selvagem, reconhecemos essa expressão própria do Self… Essa organização que se estabelece a partir de elementos do feminino. É claro que em determinado momento da vida do indivíduo, a organização dele vai se dar por outros elementos, mas esse princípio de organização, esse princípio de busca, quando falamos da mulher selvagem, estamos falando justamente disso, dessa forma de organização ativa nesse momento, expressa no feminino. Ou seja, ao nos referirmos à mulher selvagem, entendemos que estamos  retomando o nosso processo desenvolvimento, que o Jung chama de processos de individuação. O processo de individuação é nossa  oportunidade de ter contato com cada um dos elementos inconscientes, elabora-los e integra-los, mas também a possibilidade de ampliar a nossa relação com a consciência, com elementos do mundo externo. Então, pensar na mulher selvagem é pensar em trazer esses elementos femininos para o nosso processo de individuação. Pensar em como a gente vai se desenvolvendo ou amadurecendo no nosso processo de vida. Aqui não falamos só de elementos femininos, mas elementos em relação com o feminino. 

Vivenciar essa mulher selvagem é uma prática. É algo que se constrói no dia a dia, nas relações com as coisas, nas relações com as pessoas, nos nossos comportamentos, nas nossas atitudes, nos nossos momentos de ficar quieto. Nos nossos momentos de vazio, porque o vazio é um terreno propício para a criatividade, para as possibilidades também. 

Quando pensamos em vivenciar a mulher selvagem falamos por nos interessar mais por sentimentos, pensamentos, esforços que fortaleçam e protejam as mulheres. É um investir na vida criativa, nos relacionamentos com significados, nos ciclos… os próprios ciclos, e nos ciclos que ela está inserida. Também é na sexualidade, no trabalho, na diversão. É ter uma relação com todos esses processos com significado. 

É vivenciar esses processos de maneira a não estar o tempo todo à mercê do outro, ou da preocupação, ou do olhar ou do julgamento desse outro. No entanto, precisamos de um olhar sim, do nosso grupo para nos auxiliar a nos legitimar, mas não precisamos ser controlados pelo outro.  

Vivenciar a mulher selvagem é organizar essa psique objetiva, organizar esses elementos inconscientes, que muitas vezes estão negligenciados. Neste contexto, precisamos desenvolver  um ego suficientemente forte para poder dar conta disso; a gente precisa retomar de forma saudável a nossa relação entre esse princípio arquetípico  organizador e da totalidade, e o nosso ego, que é a nossa referência de quem somos. Isso fala da nossa jornada heróica, que implica entrar nessa Floresta ou atravessar essa porta, vivenciar os desafios, reconhecer o que aprendeu. Reconhecer as estratégias construídas se utilizar delas para enfrentar a vida. 

É aproximar-se da natureza instintiva: 

“implica delimitar territórios, encontrar nossa matilha, ocupar o corpo com segurança e orgulho independentemente dos dons e das limitações do corpo, falar e agir em defesa própria, estar consciente, alerta, recorrer aos poderes da intuição, do pressentimento inato às mulheres, adequar-se aos próprios ciclos, descobrir aquilo a que pertencemos, despertar com dignidade e manter o máximo de consciência possível (Pinkola Estés, 1997, p. 260). 

E onde a mulher selvagem está presente? 

Ela está presente, onde quer que haja uma mulher que seja solo fértil. 

REFERÊNCIAS  

Campbell, J. As máscaras de Deus na mitologia Ocidental. Vol 3. São Paulo: Palas Athena. 2004. 

 Polly Young-Eisendrath, Florence L. Wiedemann. Female Authority: Empowering Women through Psychotherapy. Guilford Publications, 1990.  

Jung, C. G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes: São Paulo, 2017.  

Jung, C. G. Vida Simbólica. Petrópolis: Vozes, 2017. 

Muraro, R. M. Introdução. KRAEMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras, malleus maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores. Tradução de Paulo Fróes. 28. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. 

Neumann, E. O medo do feminino: E outros ensaios sobre a psicologia feminina. São Paulo: Paulus, 2000. 

Neumann, E. História  da Origem da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1995 

Neumann, E. A Grande Mãe. São Paulo, Pensamento- Cultrix: São Paulo, 2021. 

Pinkola Estés. Mulheres que Correm com os Lobos. Rocco, 1997 

Singer, T. Cultural Complexes and archetypal defenses of the group spirit. In: Beebe, J. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psycholoy. Toronto: Daimon, 2003.  

Wolf, T.  Structural forms of the feminine psyche. C. G. Jung Institute Zurich, 1985 


Dra. Kelly Guimarães Tristão (CRP 16/1398)

Doutora em Psicologia (UFES), Psicóloga Clínica Junguiana, Pesquisadora e Supervisora Clínica.
Especialista em Teoria e prática Junguiana (UVA/RJ); Especialista em Psicologia Clínica e da Família ( Saberes/ES).
Docente de pós graduação e da Formação em Psicoterapia Junguiana/CEPAES.
Atua em Consultório particular desde 2005.

Contato: 27 992573335/ email: kellytristao@cepaes.com.br
Instagram @kellytristao.psi

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A Contratransferência : uma visão junguiana

A psicologia analítica é, antes de tudo, uma abordagem psicoterapêutica. É bem verdade que os estudos junguianos se desenvolveram ampliando os horizontes teóricos e práticos para além das quatro paredes do consultório ou da clínica individual, mas sua essência é baseada na atitude clínica.

O encontro analítico se desenrola num contexto que é descrito como a relação transferencial-contratransferencial que abarca a dinâmica consciente-inconsciente na interrelação contínua da psique do terapeuta e do paciente. Uma metáfora possível é o vaso alquimico, onde as transformações podem ocorrer de modo seguro.

Apesar de Jung ter dado contribuiões importantes à compreensão da relação transferêncial, esta se tornou secundária, devido a certa ambivalência em alguns textos de Jung acerca da transferência. Contudo, em relação à contratransferência, Jung pouco se manifestou diretamente, embora, não possamos ignorar que a exigência da analíse didática foi uma das contribuições indiretas de Jung à temática da contratransferência.

No texto que publiquei A Transferência na Psicologia Analítica pt2/2 eu comentei alguns aspectos gerais da transferência enfocando as categorias apontadas por Michael Fordham como possíveis formas e manifestações da contratransferência. Gostaria de ampliar a discussão iniciada naquele texto.

Um diálogo profundo

A contratransferência é um processo natural que se desenvolve em qualquer relação de cuidado, contudo, necessita de uma atitude ativa do analista para se tornar um instrumento terapêutico. A relação transferencial (isto é, da transferência e constratransferência) não aparece explicidamente na obra de Jung, apesar de uma de suas mais conhecidas frases expressar justamente a relação transferêncial.

O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.”

(Jung, A prática da psicoterapia , p. 68)

São três aspectos importantes: duas personalidades (psicoterapeuta e paciente) e a reação. A reação é o estabelecimento do campo ou relação transferêncial – que transforma o paciente na medida que em transfere aspectos inconscientes de sua personalidade para o psicoterapeuta e introjeta aspectos da personalidade do analista em si mesmo. Por outro lado, o analista se transforma com os conteúdos transferidos/introjetados do paciente, como forma de aglutinar, elaborar e de catalisar os processos do paciente.

Na contratransferência o conteúdo inconsciente introjetado, ora percebido como afeto, ora como sensação, é transformado em comunicação simbólica pela atitude analítica. Pela dialética interior se apercebe esse movimento o que possibilita que esse conteúdo contido pelo analista possa ganhar forma e ser devolvido pelo analista ao paciente na forma de interpretação. Fordham comenta,

a introjeção útil ocorre enquanto se ouve o paciente e, se mantido [o objeto introjetado] à distância do ego do analista, fornece material através da qual a interpretação pode ser formulada. Então a dialética interna pode ocorrer e se o analista puder projetar a si-mesmo, e particularmente as partes infantis, no paciente e combina-las com conhecimento adquirido com o paciente, pode resultar uma interpretação válida. A parte interna da dialética pode ser quase instantânea ou demorada, mas requer uma projeção antes que a interpretação efetiva possa ser feita. (Fordham, 1974, p. 278,)

A dialética interior é descrita por Fordham como similar a imaginação ativa, mas por ser relacionada aos conteúdos ativados pela transferência. A síntese obtida pelas reações contratransferenciais, não podem ser avaliadas como algo pessoal, como produto da psique pessoal no analista, mas como uma produção compartilhada, que só pode ser compreendida à luz da psique do paciente – e por isso deve elaborada simbolicamente e devolvida ao paciente como interpretação ou como imagens simbólicas para ser trabalhadas como visão imaginal, como propõe Schwartz-Salant .

Tipos e varições

A classificação da contratransferência é apensas uma forma de visualisarmos, em linhas gerais, a possibilidade de manifestação. O que define de fato é a postura do analista e sua capacidade analisar suas próprias reações diante da contratransferência ou da contrarresistência desenvolvida no processo. No texto já citado, A transferência na psicologia analítica pt.2/2 eu discuti outras formas de transferências mais específicas. Aqui gostaria de focar em duas:

Contratransferência Verdadeira, sintônica ou útil – É o processo descrito acima na dialética interior, se refere ao aspecto positivo, criativo e saudável da transferência. Que permite ao analista se conectar, compreender e integrar conteúdos do paciente de forma tranquila.

Contratransferência neurótica ou ilusória – Ocorre quando o analista se identifica com os conteúdos do paciente ou com os próprios conteúdos ativados pelo paciente. Nesse aspecto o analista pode atuar ou responder ao paciente de acordo com seus próprios conteúdos (ou neurose ou necessidade) sem que estas favoreçam ou tragam benefícios reais ao paciente. Podemos pensar nesse sentido o aspecto do poder descrito pelo Guggenbul-Craig, quando se refere a sombra do analista em sua obra O abuso do Poder.

A contratransferência pode se dar de forma sutil ou aguda. Quando ocorre de forma sutil, ao longo das sessões o analista pode não se aperceber dos afetos brandos que vão se manifestando como simpatia, interesse, incômodo que não perturbam a relação mas colorem de diversas formas a percepção do analista. Em sua forma aguda, ou seja um rompante de tédio, raiva, ou sensação fisica durante a sessão, tende a chamar mais atenção, fazendo que o analista perceba de uma forma mais clara.

Duas formas de contratranferência que valem a pena comentar são a contratransferência erótica e a agressiva. Em todo caso, elas podem ser sintônicas ou ilusórias dependendo de como o analista lidou com sua experiência.

A respeito da contratransferência erótica Steinberg (1992) enumera alguns fatores que podem se relacionar ou desencadear a resposta sexual do analista. São eles:

  1. Compensação de uma relação insatisfatória entre analista e paciente.
  2. Sentimentos sexuais podem indicar uma carência sexual pessoal do analista.
  3. Pode se relacionar com a neurose própria do analista.
  4. Pode se relacionar com uma conduta sedutora do paciente de forma consciente ou inconsciente.
  5. Pode ser relacionar a uma percepção inconsciente da sexualidade reprimida do paciente.
  6. Pode ser uma concretização de um evento simbólico.

Do mesmo modo, Steinberg (1992) sugere algumas pistas para compreendermos a contratransferência agressiva. Segundo ele a contratransferência agressiva:

  1. Pode indicar o medo do paciente em estar numa relação de intimidade ou amor.
  2. Pode indicar sentimentos de raiva reprimida no paciente que este não reconhece conscientemente ou teme em expressar diretamente.
  3. Pode ser expressão da própria contratransferência neurótica.
  4. Pode indicar a introjeção de várias estruturas da personalidade do paciente (contratransferência delusiva).
  5. Pode indicar possíveis desenvolvimentos futuros do paciente ainda não perceptíveis a este.

A percepção dos sentimentos, pensamentos e sonhos de fundo erótico devem ser analisados pelo analista à luz da relação com o paciente, e caso o analista tenha dificildade de compreensão, deve procurar supervisão. Vale dizer que seria importante que o supervisor e analista pessoal sejam pessoas diferentes.

É muito importante compreender as feridas do analista ou ganchos presentes que sustentam as transferências.

Muitos caminhos

São várias as formas como os junguianos lidam e trabalham com a contratransferência. Muitos clássicos optam em suporta-la sem falar diretamente ou abertamente sobre a mesma. Muitas vezes, suprimindo as lacunas com a presença ativa através da autoexposição – que pode ser vista tanto de um aspecto positivo ou negativo (uma autoexposição neurótica, enfatizando o aspecto sombrio e impositivo do analista, e não o conteúdo simbólico da relação transferencial).

Com frequência, a autoexposição conscensiosa pode ser um instrumento simbólico importante na relação terapeutica, contudo, deve ser avaliada com atenção diante da relação transferencial para não ser uma atuação inconsciente diante dos conteúdos introjetados pelo analista.

Outra forma de trabalhar com a contratransferência, num processo contínuo é descrito por Nathan Schwartz-Salant como “visão imaginal” onde o analista compartilha a experiência simbólica das imagens interiores que emergem da contratransferência na relação terapêutica, de modo similar a uma imaginação ativa compartilhada com o paciente.

Sedgwicks (1999) dá uma sugestão de fases para se compreender e trabalhar com a contratransferência:

  • Preliminar : Se refere a formação, estudo, autoconhecimento do analista que possibilitará compreender o próprio processo e o processo do paciente.
  • “Limpando o campo”: consiste em se abrir para a experiência do inconsciente do paciente, sem julgamento , sem pressuposições acerca do paciente, permitindo que o conteúdo se manifeste.
  • Recepção: se refere ao acolhimento integral do paciente, isto é, uma atenção aos múltiplos processos do paciente – pensamentos, fantasias, estados de humor, expressões físicas e verbais etc. – que possam trazer reações do analista.
  • Seleção: consiste em selecionar, diante dos múltiplos estímulos, quais são mais pertinentes/relevantes à questão do paciente. E se manter na direção, percebendo o caminho que se contrói a partir das associações (tanto do paciente quanto do próprio analista).
  • Contenção: O analista serve de continente para os conteúdos do paciente. Esse processo pode se alongar, e o analista suportar e dar forma em si mesmo ao conteúdo do paciente.
  • Resolução: Consiste na forma ou meio que o analista utiliza para devolver ao paciente o conteúdo assimilado por este.
  • Incubação: após a devolução do conteúdo ao paciente, o analista deve aguardar, quase num estado de suspensão entre as interpretações e a compreensão do paciente sobre as mesmas.
  • Validação: é a fase onde se verificam as mudanças tanto em relação às percepções contratransferenciais, comportamentos e atitudes do paciente e também nas manifestações inconscientes, como os sonhos.

Essas etapas são didáticas e favorecem a reflexão acerca da importância da conscientização da contratransferência e de seu uso como fator fundamental para a construção do processo de mudança do paciente.

Refererências bibliográficas

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

Fordham, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974.

SEDGWICKS, D. The wounded Healer, Routledge: NewYork, 1999.

STEINBERG,W. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana, São Paulo: Cultrix, 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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curso Fundamentos da Clínica Junguiana

A Clínica Junguiana apresenta uma rica diversidade de métodos e técnicas. Nesse curso vamos trabalhar os aspectos fundamentais que possibilitam vivenciar essa diversidade.

Neste curso visamos integrar os aspectos fundamentais apresentados por Jung, contudo, dado uma atenção especial para os desenvolvimentos junguianos especialmente da escola inglesa de Michael Fordham e autores pós-junguianos que contribuíram com a compreensão da relação terapêutica.

✔Anota aí na sua agenda:

✅ Turma IV
✅Dias: 29/03, e 05, 12, 19 e 26/04/23.
✅Horário: 20 às 22h.
✅Curso on-line pelo zoom. O curso ficará gravado e disponível.
✅Investimento: R$ 300,00 em até 3x no cartão (ou 280 reais a vista no pix/boleto).
✅ Com certificado de 10h/aula
✅Inscrição: via link na bio @cepaes1, após o preenchimento da inscrição o cursando receberá informações no seu email.
✅Maiores informações: e-mail (contato@cepaes.com.br) e/ou whatssapp/telefone (27 +55 27 99926-7779).

Maiores informações clique no link da bio

Vem com a gente! 💙


CEPAES – Centro de Psicologia Analítica do Espírito Santo
📍Av. Nossa Sra. da Penha, 565 – Ed. Royal Center – Sala 602 – Santa Lucia, Vitória – ES, 29056-250
📲(27) 3235-8293/+55 27 99926-7779

💙Acolhimento e cuidado integral com qualidade técnica para você!

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Grupo de Estudos do Livro “A Personalidade Limitrofe”

No dia 06/02 iniciaremos o estudo livro “A personalidade limítrofe” de Nathan Schwartz-Salant um dos poucos livros junguianos que aborda o transtorno de personalidade borderline. O objetivo do grupo é trazer a discussão aprofundada do texto assim como dialogar sobre as experiências e dificuldades dos participantes.
O grupo não tem um número definido de encontros.

Início: 06/02/23

Encontros Semanais sempre Segundas-feiras das 20 às 21:30

On-line pelo Zoom (encontro ficará gravado).
Mensalidade: 120 reais (pix ou boleto)

Inscrição: Link na bio. Após o preenchimento da inscrição o cursando receberá informações no seu email.

Mais informações: contato@cepaes.com.br ou (27) 99926-7779.

Coordenação: Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo; e com Formação em curso em Acupuntura Clássica Chinesa pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisas Aplicadas/Faculdade Interativa de São Paulo. Diretor Clínico do CEPAES, Professor do curso da Formação em Psicoterapia Junguiana. Atua desde 2004 em consultório particular.

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Medo, controle e a adaptação

“Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

(…)

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.”

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945

No primeiro post de 2023 eu gostaria de falar sobre três elementos que impactam nossa vida: o Medo, o controle e a adaptação. O medo é uma emoção fundamental da vida. Em seu aspecto mais basal o medo se manifesta como o fundamento de autopreservação e cautela, podendo também se manifestar na paralisia e na fuga.

Ao longo de nossa vida, crescemos com vivências de medo naturais como o medo de ficar sozinho, da escuridão, da perda/abandono, de altura que se manifestam desde a infância, outras manifestações de medo vão se construindo com o desenvolvimento do indivíduo e de acordo com cultura, como o medo da morte, medo do fracasso, medo do julgamento e rejeição.

A cultura nos oferece formas de lidar com o medo seja pela nomeação e personficação do medo – na forma de monstros, fantasmas e demônios – ou através de ações e gestos apotropaicos – bater na madeira, invocar santos, heróis ou anjos, benzer-se – que visam repelir o medo e o mal. As religiões, em última análise, são sistemas que nos protegem dos medos, nos auxiliando a enfrentar os mistérios da vida e morte.

Na medicina chinesa, o medo é associado ao movimento da água, relacionado aos rins. Essa relação não é muito clara, mas é importante entender que os rins abrigam um aspecto energético/espiritual importantíssmo que é o Shen, que pode ser traduzido como “força de vontade” ou “vondade de vida” que vem a ser o ímpeto vital que nutre as possibilidades vitais psicofísicas. O medo, em seu aspecto natural, momentâneo visa preservar a vida, mas quando em excesso ou cronificado ele afeta o fluxo da vida, ele paralisa, limita e agride o Shen, a vontade de vida – que em alguns casos poderá afetar também o orgão físico rim. Colocando em desequilibrio todo o organismo (afetando as capacidade emocional e expansiva dos Hun, associado ao fígado, gerando irritabilidade, estagnação; aumentando a preocupação e ansiedade, afeta a segurança, capacidade de autorreferência do Yi, o propósito, associado ao Baço; que vão afetar a capacidade de elaboração e coordenação da vida Shên, a mente consciente, associado ao coração.

Assim, o medo afeta o organismo/indivíduo como um todo. Com frequência, temos reações defensivas inconscientes (mecanismos de defesa) que atuam diretamente, tentando evitar a ansiedade e o medo. De nossas atividades conscientes voluntárias temos dois modos de ser ou de nos comportarmos que expressam nossa relação com o medo : o controle e a adaptação.

Quando me refiro ao controle, falo da necessidade do controle, da necessidade de organizar, de ter previsibilidade. Ou seja, a vida se torna enrijecida, contida e artificial (sem espontaneidade ou criatividade). É como se repressássemos a vida, contivéssemos seu fluxo – nos expondo tanto às secas/infertilidade (criatividade) quanto aos transbordamentos e enchentes (imprevistos). Em ambos os casos, a perda do controle é vista como uma forte ameaça à vida – como vemos nos quadros fóbico-ansiosos. Em todo caso, não conseguimos lidar com nossa história, com nossos recursos, gerando segurança para enfrentar as situações do cotidiano.

É importante entender que quando tentamos controlar o ambiente, controlar eventos futuros, controlar exaustivamente nossas reações e dos outros, estamos tentando controlar o nosso medo/insegurança projetados nessas situações. Essa necessidade de controle é o eco do medo, que também se manifesta como ansiedade.

Por outro lado, falamos da adaptação. Esta se expressa como a flexibilidade, a capacidade de acolher e mudar/responder ao que nos advém. É importante entender que, naturalmente, pode vir acompanhada de sofrimento diante ás situações da vida, contudo, não há uma negação do medo. A adaptação é um modo de atravesar as tempestades da vida. Esther Harding, importante analista junguiana da primeira geração, afirmou sobre um diálogo que teve com Jung em 1924, quando foi abordado o medo.

Disse ele: “Tenha medo do mundo, porque é grande e forte; e tema os seus demônios interiores porque são muitos e brutais; mas não tenha medo de si mesma, porque esse é o seu Eu”. Eu disse que temia abrir a porta, com receio que meus demônios saíssem e destruissem. Jung respondeu: ” Se você os encerra, também seguramente destruírão. A única maneira de delimitar o Eu é pelo experimento. Vá tão longe quanto deseja ir, e não tardará em descobrir que foi até onde suas próprias leis permitem. Se sentir medo, seja corajosa o bastante para fugir. Encontre um buraco para esconder-se, pois essa é a ação de um homem bravo, e assim fazendo você estará exercendo coragem. Em breve o impulso de covardia estará extinto e a coragem tomará o seu lugar.” Eu disse: “Mas como eu parecerei irremediavelmente instável e cambiante!” Ele replicou: “Então seja instável. Uma nova estabilidade se reafirmará. Vivemos para as outras pessoas ou para nós mesmos? Este é o lugar onde uma pessoa deve aprender a verdadeira abnegação, o altruísmo autêntico.” (HULL, McGuire, 1989, p. 43)

Esse diálogo entre Esther Harding e Jung indica o ponto essencial da adaptação, que inclui o medo, a fuga, o enfrentamento e acima de tudo a abertura a experiência. E, para isso, precisamos de uma profunda honestidade conosco, assim como reconhecimento de nossas habilidades, de nosso caminho, dos nossos erros e acertos. Nos permitindo o pulsar da vida, ora nos recolhendo, ora nos expandindo.

Na intodução do livro “O medo da Vida”, Alexander Lowen afirma

A neurose não é, em geral, definida como medo da vida, mas é exatamente isso. A pessoa neurótica tem medo de abrir seu coração ao amor, teme estender a mão para pedir ou para agredir; amedronta-a ser plenamente si mesma. Podemos explicar esses temores psicologicamente. Quando abrimos o coração ao amor, ficamos vulneráveis ao risco da mágoa; quando estendemos os braços à frente, arriscamo-nos à rejeição; quando agredimos, há a possibilidade de sermos destruídos (LOWEN, 1989, p.11).

A vida é fluxo, movimento e transformação. O medo desse fluxo gera a necessidade de controle, em grande parte, relacionada ao desconhecimento de quem somos, o distanciamento de nossas potencialidades e nossa história. Quando nos abrimos a vida nos expomos às mudanças e naturalmente nos adaptamos – exatamente o que acontece quando entramos no mar ou mesmo numa piscina, onde pouco a pouco nosso corpo se ajusta à flutuação, ao movimento da àgua ou das ondas, não controlamos o mar, mas nos ajustamos ao fluxo respeitando nossos limites e os limites do mar.

Com esse olhar que Jung afirmou acerca da prática da psicoterapia

“O que viso é produzir algo de eficaz, é um produzir um estado psíquico, em que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em que nada mais é definitivo nem irremediavelmente petrificado; é produzir um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser”(Jung, 1999, p. 43-4).

A individuação é um exercício diário de adaptação, de fluir na vida, amadurecendo e transformando-se a cada encontro – com ou sem medo.

Referencias bibliográficas

LOWEN, Alexander, O Medo da Vida, São Paulo, Summus, 1989

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

McGUIRE, William., ; HULL, R. F. C., C.G. Jung: Entrevistas e Encontros; Ed.Cultrix, São Paulo, 1982.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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