Polarização Eleitoral no Brasil – Um olhar junguiano a partir da Teoria dos Complexos Culturais

Texto publicado em 22 de outubro de 2018, no site do CEPAES

Fabrício Fonseca Moraes[1]

Kelly Guimarães Tristão[2]

“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa”

(Cálice – Chico Buarque)

Desde as eleições presidenciais de 2014 vivemos no Brasil um turbilhão de afetos e posturas exaltadas, que dividiram o país, naquele momento sob a representação de dois partidos políticos o PSDB (Partido da Social Democracia do Brasil) e o PT(Partido dos Trabalhadores). O abalo causado pelo momento político-eleitoral se desdobrou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) e na configuração de uma extrema direita que não tinha muita forma no Brasil, desde o fim da ditadura Militar (1964-1985).

O irrompimento desse fenômeno da extrema direita, tomou forma, corpo e voz na campanha eleitoral do, então candidato, Jair Messias Bolsonaro, do PSL (Partido Social Liberal) cujo discurso era caracterizado pelo nacionalismo, conservadorismo, moralismo, racismo, misoginia, lgbtfobia, desprezo por direitos humanos, relativização da tortura e negação da ditatura (assim como de movimentos de direita históricos como o fascismo, nazismo e o holocausto na II Guerra Mundial). O movimento liderado por Bolsonaro chamou atenção e, certa consternação, por ser um movimento tão heterogêneo que agregou tanto classes historicamente privilegiadas e orientadas pela direita quanto intelectuais, mulheres, homossexuais e negros – vítimas dos discursos preconceituosos. A complexidade desse fenômeno não nos permite ser simplistas a ponto de rotular de forma estereotipada a todos indistintamente “fascistas”, adjetivo frequentemente utilizado pelos opositores para identificar os seguidores de Bolsonaro nas mídias sociais. 

Por outro lado, notamos que esse fenômeno da extrema direita não é uma peculiaridade do Brasil, mas um fenômeno que vem crescendo em diversos países como EUA, Alemanha, França, Itália, Grécia dentre outros. Precisamos, portanto compreender a partir de uma perspectiva mais ampla sobre como somos todos tomados por essa convulsão emocional que nos afeta de modo semelhante a vários países.

Para além das experiências em redes sociais, vemos o sofrimento causado pela polarização – o medo, angústia, desesperança – manifestos no dia a dia do consultório, onde lidamos com o sofrimento de pessoas afetadas pelo movimento e suas consequências, como divisão e hostilidade surgida dentro das famílias, igrejas e demais grupos sociais.

Na Psicologia Analítica, um estudo contemporâneo que vem ganhando destaque e que nos possibilita compreender esses fenômenos é a teoria dos complexos culturais. Esta teoria se desenvolveu a partir dos conceitos da teoria dos complexos de Jung passando pelo conceito de inconsciente cultural de Joseph Henderson.

De Jung aos Complexos Culturais

A psicologia de grupo fez parte da preocupação de Jung desde o início de sua obra, no prefácio de 1916, do livro Psicologia do Inconsciente:

 A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação.” (JUNG, 1999, p. VIII)

Jung compreendia que, assim como um conteúdo arquetípico constelado na psique pessoal direcionava a forma de perceber, interpretar e agir, a mesma dinâmica arquetípica interferiria na relação coletiva dos grupos e nações em relação ao ambiente e outros grupos. Um de seus principais trabalhos na década de 30 foi Wotan (1936), no qual Jung, apontou como o povo alemão havia sido tomado por um dinamismo arquetípico, identificado pelo deus Wotan, deus dos ventos. Em essência, significaria compreender que uma dinâmica impessoal, baseada num princípio enraizado na experiência cultural germânica, fora ativado.

A compreensão de Jung, baseada numa aplicação da teoria dos arquétipos, estava muito associada por aspectos impessoais da experiência do grupo ou nação, isto é, ficando aspectos históricos e de constituição da identidade daquele grupo/nação em posição secundária.

Devemos notar que nas décadas de 30 e 40, Jung participou de discussões acerca dos acontecimentos de sua época – seja em entrevistas em rádio[3] ou através de textos. Contudo, a natureza ambígua tanto de suas posições pessoais quanto de seus trabalhos sobre a psique coletiva resultou numa reação fortemente negativa, tanto pessoalmente quanto à psicologia analítica. Visto que a perspectiva apresentava uma visão reducionista ou mesmo estereotipada dos grupos e povos, essas limitações em seus trabalhos fizeram com que o mesmo fosse acusado de racista e, de forma específica, de antissemita. Andrew Samuels (1995) demonstra como a ambivalência de Jung em relação aos judeus e ao nazismo, seja por suas ações, publicações e omissões, o colocou numa situação condenável nesse período da história.

O mal-estar gerado pelos equívocos de Jung, marcaram as gerações seguintes de junguianos que ficaram

profundamente feridos e limitados pelas acusações de anti-semitismo contra Jung e seus seguidores. Depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, poucos queriam abordar o tema “caráter nacional” ou complexos culturais por medo de serem contaminados por alegações de discriminação ou, muito pior, de contribuir para a justificação do genocídio.[4] (SINGER, & KAPLINSKI, 2010, p. 22-3)

Apesar do receio por parte de muitos junguianos em empreender pesquisas no campo da psicologia de grupo, Joseph Henderson, um dos colaboradores mais próximos a Jung, desenvolveu o conceito de inconsciente cultural em 1962. Segundo Henderson o inconsciente cultural é

uma área da memória histórica que se situa entre o inconsciente coletivo e o padrão manifesto da cultura [e] tem algum tipo de identidade advinda dos arquétipos do inconsciente coletivo, que auxilia na formação do mito e do ritual e também promove o processo de desenvolvimento. em indivíduos[5] ( HENDERSON, 1990, p. 103).

Henderson promoveu uma distinção e ampliação importante na noção de inconsciente coletivo de Jung. O inconsciente cultural seria uma zona intermediária entre a psique arquetípica e a psique pessoal. Henderson, situou de um lado das bases arquetípicas, impessoais e filogenéticas comuns a toda humanidade e do outro, as representações ou imagens arquetípicas na cultura, possibilitando compreender cada grupo em sua peculiaridade, história e formação de identidade (Henderson, 1990). Assim, o autor possibilitou uma integração da teoria dos arquétipos com uma perspectiva sócio-histórica e intergeracional  que, inconscientemente, influenciam a constituição, atitudes e comportamento dos grupos.

O termo “complexo cultural” foi um derivado da teoria de Henderson, contudo, mencionado e não amplamente desenvolvido até o final dos anos 90, quando estudos passaram a dinamizar e aplicar a compreensão do inconsciente cultural de Henderson com a Teoria dos Complexos de Jung, destacando-se os analistas junguianos Samuel Kimbles e Thomas Singer na sistematização e ampliação dos estudos no campo dos complexos culturais.  

Os complexos Culturais e as Defesas Arquetípicas do Espirito Grupal

Na psicologia individual os complexos pessoais se formam em torno de núcleos arquetípicos que atraem e condensam a experiência e história pessoal carregadas de afeto e significado, que dão o tom afetivo do complexo, servindo de referência ao Ego em seu processo de desenvolvimento. De modo similar, os complexos culturais são sistemas energéticos que organizam a psique cultural integrando a história, a identidade e idiossincrasias do grupo, fornecendo coesão e sentido ao grupo (KLIMBES, 2003)

Assim, os complexos culturais nos permitem compreender tanto a constituição e organização de um determinado grupo ou cultura, quanto os efeitos desses complexos culturais e psique individual, segundo Tristão (2018)

Ao se tentar compreender e organizar a história psicológica de determinada cultura, através dos complexos culturais, verifica-se que a memória cultural não se relaciona somente aos membros da cultura/grupo, mas à própria cultura/grupo que produz seus próprios campos emocionais. O memorial cultural se utiliza da psique individual de seus membros para difundir afetos e ideologias, de maneira a moldar valores, prescrições, rituais, expectativas e a própria história do grupo. Nessa direção, a maneira como os grupos/culturas concebem a dívida para com o passado, bem como as reparações exigidas do futuro, são profundamente influenciados pelos complexos culturais (p.116)

Pode-se compreender que os complexos culturais se caracterizam por: I) organizar o sistema de crenças e emoções coletivas; II) Operar de forma autônoma; III) Operar como campos energéticos afetados; IV) mediarem a relação emocional do indivíduo com os modelos culturais do grupo; V) proporcionar o sentimento de pertença, identidade e continuidade histórica (SINGER, 2003; TRISTÃO, 2018).

Os complexos culturais são expoentes do inconsciente cultural, assim, na maior parte das vezes não são percebidos através da história “oficial” ou da narrativa mítica da história de um grupo, mas como os indivíduos são afetados por essas narrativas. Os complexos culturais mobilizam afetos, fantasias, sentimentos no individuo e/ou no grupo “que promovem uma distorção do mundo para a consciência, gerando respostas automáticas para o outro. Isso torna a realidade do outro invisível” (TRISTÃO, 2018, p. 113).

É importante ressaltar que sempre que falamos de grupo, estamos pressupondo uma distinção entre o participante e o não-participante, de uma realidade interna e externa ao dinamismo do grupo. Isso nos remete aos aspectos mais basais e arquetípicos de nossa constituição humana que é a dependência do outro. Essa dependência se dá desde os aspectos fisiológicos do desenvolvimento ao processo de inserção na realidade simbólica que nos caracteriza como humanos. Antes de nos compreendermos como indivíduos, isto é, com um ego constituído e funcional, somos parte de um grupo e cultura que nos molda e nos oferece parâmetros nos quais nossa individualidade será constituída. Assim, a relação com a cultura (em seus aspectos conscientes e inconscientes), i.e, complexo cultural, está tão arraigado em nossa organização psíquica pessoal que não percebemos a relação com os complexos culturais. 

Isto porque, em seu aspecto positivo, ou seja, quando atua na psique coletiva de forma saudável, o complexo cultural oferece segurança e estabilidade ao indivíduo e ao grupo, por nutrir o sentimento de pertença e coesão, oferecendo assim uma percepção de continuidade e sobrevivência. Assim, a relação com o próprio grupo e com os demais grupos ocorre de forma segura e amistosa.

 O cerne da existência do grupo pode ser traduzida através complexo cultural ou pela imagem do “espirito grupal”.

O espírito grupal diz de uma representação da experiência matriz na vida do grupo. Quando essa experiência é considerada bem nutrida e saudável, o espírito grupal sustenta e orienta o grupo e cada membro. Do contrário, quando o espírito do grupo está traumatizado, vulnerável ou ferido, ativam-se as “defesas arquetípicas”, que podem assumir uma energia violenta e agressiva, a fim de proteger o “valor cultural sagrado” e a possibilidade de extinção do grupo (TRISTÃO, 2018, p.117)

As experiências traumáticas ou as feridas de grupo são experiências históricas, que atravessam gerações que permanecem vivas no inconsciente cultural do grupo. Como exemplo, podemos falar da escravidão dos negros no Brasil, cujos efeitos permanecem vivos, consciente ou inconscientemente, tanto nos descendentes dos negros escravizados quanto nos descendentes dos brancos escravagistas. Nos afrodescendentes as defesas do espírito grupal se fizeram perceber na resistência, que possui diferentes formas de expressão como religião, como o candomblé, guardiã da língua, do culto e ancestralidade; na capoeira, nas expressões artísticas, e nas últimas décadas no movimento negro, que busca a reparação da dívida histórica da escravidão. Por outro lado, os ecos do escravagismo ecoam no racismo estrutural, nos privilégios e na manutenção da estrutura discriminatória. Esses dois complexos culturais se constituíram a partir da ferida histórica infringida a um grupo.

Nessa compreensão do complexo cultural, é preciso entender três componentes fundamentais: (i) as feridas traumáticas do grupo, lugar ou valores que conduz o espírito do grupo; (ii) o medo de extermínio do espírito pessoal ou do grupo por um estrangeiro; (iii) o surgimento do guardião/protetor, ou vingador, promovendo a defesa aos “perseguidores” do espírito grupal. (TRISTÃO, 2018, p.117)        

As defesas arquetípicas do espirito grupal se manifestam de forma autônoma, incitando o grupo e indivíduos contra o grupo rival, com uma agressividade intensa como se a sobrevivência do grupo dependesse da aniquilação do grupo rival. Existe o caso onde a defesa arquetípica do espírito grupal não projeta no grupo rival, mas introjetado, é percebido com autodepreciação explicitado pelo humor ou autocomiseração, fazendo que a agressividade se volte para dentro do grupo. Pode-se apontar que casos de suicídio em grupos oprimidos possam apontar para essa direção.

Na relação entre dois grupos onde a polarização dos complexos culturais produzem um alinhamento reativo entre os grupos, Singer e Kaplinski (2010) afirmam que

Esses alinhamentos negativos realmente formam um “eixo” no sentido de que uma linha direta ou conexão é traçada entre os daimons de um grupo, protegendo seu centro sagrado e os daimons de um grupo rival, protegendo seu centro sagrado. Tais alinhamentos negativos criam as condições para a erupção de violência incompreensível, destruição e impulso para destruir. Ao fazer a ligação entre as defesas de um grupo e as defesas demoníacas de outro, elas formam, de forma mais potente, as condições no inconsciente cultural para o surgimento indiscriminado do mal e que, no inconsciente cultural, é o verdadeiro “eixo do mal”.[6](p.204-205. Tradução nossa)

A agressividade e violência marcam a manifestação das defesas do espírito de grupo. Devemos notar que frente a ameaças ao espírito de grupo, podem surgir “guardões, protetores ou vingadores” do espírito grupal, personificadas em lideranças que para o bem ou para o mal, agem como em nome do espírito do grupo.

A polarização no Brasil

A polarização política no Brasil tomou forma nos últimos anos, desde a última eleição eleitoral em 2014, então representada pelos candidatos Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) havia uma denominação de “coxinhas” e “pão com mortadela”, em 2018 os termos mudaram para “fascistas” e “comunistas”, elevando o tom para uma agressividade mais explícita.

Para amplificarmos e compreendermos a dinâmica desses complexos culturais gostaríamos de elencar três parâmetros: Estereótipo; feridas ou traumas de grupo e Guardião ou protetor.

O estereótipo se refere a percepção, fantasiosa ou não que um grupo faz do outro, projetando essas percepções como um “rótulo” com o qual o outro grupo pode ou não se identificar. Essas projeções falam de um elemento fundamental na coesão do grupo:  o medo. O medo se refere sempre a ameaça externa, ameaça a sobrevivência do grupo.

No grupo vinculado ao candidato da extrema direita o medo que se manifesta toma a forma de comunismo, que foi potencializado pela crise humanitária da Venezuela sob o governo de Maduro, criando um clima de emocional de tensão e medo que é alimentado pelas notícias falsas (fakenews). Assim,  tomadas pelo medo, que é manifesto reativamente na raiva, o grupo responde a todo discurso ou ação de solidariedade, justiça social ou de direitos humanos taxando-as de “comunistas”. Mesmo virtudes cristãs, no discurso religioso, são confundidas com o comunismo.  Devemos notar, que o medo que se apresenta é o medo da perda de direitos e privilégios, e do caos econômico.

Por outro lado, no grupo vinculado ao candidato da esquerda, o medo ou ameaça se manifesta na forma da ditadura ou, mais propriamente, do fascismo. Nesse caso, o medo do fascismo se associa ao discurso do candidato Bolsonaro que historicamente[7] era marcado pelo racismo, homofobia e misoginia, negação da ditadura militar no Brasil. Nesse caso, o medo que atravessa esse grupo é o medo da perda de direitos, da desproteção do estado, e o medo da violência contra minorias e pessoas em situação de risco social legitimado pelo discurso do candidato.

A projeção do estereótipo possui uma função especial pois identifica a ameaça ou o inimigo, fornecendo uma orientação ao grupo na percepção da realidade – podendo esta ser distorcida de acordo com os afetos do grupo.

As feridas ou traumas do grupo se referem a danos, prejuízos e ameaças objetivas, isto é, colocaram em risco a existência física do grupo (como por exemplo, a escravidão, perseguição politico-religiosa, genocídio) ou subjetiva, que afeta a autopercepção e a autoestima do grupo. Em ambos os casos, o trauma é historicamente constituído por ancestralidade (como grupos étnicos) ou por adesão, quando a pessoa entra no grupo, como no caso dos grupos religiosos ou grupos sociais. O sentimento de pertença integra o indivíduo à coletividade, isto é, ao complexo cultural. Sob esse aspecto, o indivíduo é parte do drama do grupo, integrado às gerações que o precederam. E, o mais importante: a ferida ou trauma clama por reparação, por isso que mesmo que silenciosamente ela se retroalimenta, atravessa as gerações e pode eclodir mesmo décadas de silêncio.

O grupo caraterizado pela direita é um grupo  peculiar pois é uma amalgama de feridas que condensaram em torno do símbolo do antipetismo, por isso é um grupo heterogêneo. Assim, podemos pensar nessa diversidade pelas feridas tão distintas sob duas categorias: a perda de privilégios e sentimento de traição.

A categoria de “perda de privilégios” é complexa, pois compreende desde grupos que, ao longo das últimas décadas, tiveram perdas financeiras, perda de status social associado a diminuição da desigualdade; perda de influência por parte de grupos religiosos que perderam influência e hegemonia moral sobre sociedade, especialmente associado a aquisição de diretos por minorias (como o casamento igualitário) e diante da possibilidade de mudança de legislação em relação ao aborto.

A outra categoria compreende o sentimento de traição, que está associado às denúncias e a condenação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva por corrupção. Isto porque, muitos que aderiram ao grupo da direita foram eleitores, beneficiários das políticas sociais do Governo Lula, contudo, com as denúncias e a condenação (associadas a não haver uma autocrítica do partido) fez com que eleitores se sentissem traídos, na confiança e esperança que o PT e o ex-presidente significassem mudança. O sentimento de traição alimenta em larga escala o “antipetismo”, consistindo um dos aspecto mais fundamentais para a integração do grupo apoiador do candidato Bolsonaro.

Por outro lado, o grupo representado pela esquerda, possui características históricas associadas as classes menos favorecidas, as feridas sendo associadas a exploração e desvalorização do trabalho, exclusão social (saúde, educação e direitos), visibilidade e liberdade de expressão. Essas feridas históricas encontraram no discurso de justiça social e avanços de direitos ao longo dos governos petistas, proteção e representação.

Ao compreender as feridas podemos entender a personificação defensiva do espírito grupal, quer na figura do guardião/protetor ou na figura do vingador do grupo. Nessa perspectiva, o guardião ou protetor personifica o desejo de manutenção do grupo, sobrevivência e continuidade. O vingador personifica o resgate do grupo, uma busca de reparação pelo trauma vivido ou uma restauração do grupo.

Quando analisamos as três situações, fica mais clara a dinâmica desses grupos, compreender os afetos exaltados, a dissociação entre a realidade, discursos e valores pessoais; e a tolerância notícias falsas.

Jung, culpa coletiva e alteridade

Diante da polarização, da exaltação dos afetos, da agressividade, e do amplo sofrimento psíquico que vemos em todos os grupos e na população podemos nos perguntar: Como lidar esse fenômeno?

Ao final da segunda guerra, Jung escreveu um texto chamado “Depois da Catástrofe”(1945), onde introduz uma noção importante que ele chamou de “culpa coletiva”, que é uma modalidade da culpa psicológica diferente da culpa jurídica ou moral, isto é, da culpa por um fato objetivo, mas antes uma identidade psíquica, isso porque Jung compreendia que o ser humano

não vive longe dos demais e que o seu ser inconsciente se acha ligado a todos os outros homens, então um crime nunca pode correr de maneira isolada como pode parecer à consciência. Ele acontece num âmbito bem mais vasto. (…) PLATÃO já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. A indignação e a exigência de punição se levantam contra o assassino e isso tanto mais violenta, apaixonada e odiosamente quanto mais ferver a chispa do mal dentro da própria alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram (JUNG,1988, p.20-1).

Sob essa compreensão, unidade inconsciente faz com que todos tomem parte dos eventos que os envolvem. Tomamos parte na medida que os eventos nos afetam, nos tocam. Reagimos inconscientemente no corpo, nos afetos, conscientemente podemos condenar, apoiar ou nos omitir. A indiferença não é uma opção psíquica. Em seu aspecto mais fundamental a culpa coletiva expressa uma solidariedade psíquica. Desse modo, para Jung, a culpa coletiva não visa a punição, mas, especialmente a confissão e compensação. Diante do crime, da violência e das atrocidades que desumanizam as vítimas, nos levam a desumanizar os agressores – nomeando-os são monstros, loucos, doentes. A desumanização ou objetificação é uma forma de afastarmos a “culpa coletiva” ou “responsabilidade coletiva” não individual, mas da sociedade que falhou em proteger as vítimas. Acusar, julgar e distanciar dos fatos é uma forma de não assumir a responsabilidade com o outro ou com a coletividade.

E não falamos de impunidade, a culpa coletiva não exime o indivíduo, mas possibilita uma mudança ou transformação coletiva.

Todos nós podemos identificar esta sombra de que emerge o homem de nosso tempo. Não precisamos atribuir a máscara do demônio ao alemão. Os fatos falam uma linguagem bem mais clara e quem não pode compreendê-la não pode ser ajudado. O que fazer com essa visão pavorosa é algo que cada um deve descobrir por si mesmo. Na verdade pouco se ganha em perder de vista a própria sombra ao passo que o conhecimento da culpa e do mal que habitam em cada um traz muitas vantagens. A consciência da culpa oferece condições para a transformação e melhoria das coisas. Como se sabe, aquilo que permanece inconsciente jamais se modifica e as correções psicológicas são apenas possíveis no nível do objeto (JUNG, 1988, p. 36).

Dessa forma, o que vemos na polarização política no Brasil, movida pelos complexos culturais, é a desumanização do outro. Isto é, o outro se torna um objeto, não é percebido como igual, uma pessoa, se torna veículo ou símbolo de uma ideologia a ser combatida – o então amigo ou familiar se torna “fascista” ou “comunista” – objeto de ódio ou temor.

É importante esclarecer que não falamos de uma cúpula partidária ou de quem dá forma ao ato violento atacando as pessoas, nem daqueles que personificam o discurso de ódio contra minorias legitimando a violência, tirando proveito do sofrimento coletivo para benefício próprio. Falamos de pessoas, amigos, colegas de trabalho, familiares e de pacientes que chegam a nossos consultórios.

Passando a tempestade ou “depois da catástrofe” reconhecer o nosso próprio ódio e medo é um passo fundamental para perceber o outro como humano. A noção que Jung insere com a culpa coletiva é do reconhecimento de nossas sombras para não apontarmos o dedo, para não diminuirmos o outro – acirrando a polaridade.

Somente pelo reconhecimento de nossas próprias sombras, da culpa coletiva, da humanização do outro, da existência do grupo que se opõe ao que me identifico e do sofrimento desse grupo (ou das pessoas desse grupo); é que conseguiremos integrar a alteridade necessária ao diálogo, o símbolo necessário para superar a divisão.

Na alteridade reconhecemos não somente o outro, mas a nós mesmos. Depois das eleições teremos de lidar com a desilusão, com o medo e a resistência. O desafio de tecer novos laços afetivos que possibilitem reconstituir indivíduos, famílias e grupos divididos por essa polarização. Reintegrar a alma brasileira dilacerada ao longo dos anos pelo processo político.

O resultado da eleição do próximo dia 28/10/2018 nos confrontará com  mais uma etapa da polarização do país. Assim, a consciência da divisão nos coloca diante do fato de que independente de quem seja eleito, psiquicamente, todos somos perdedores.

REFERÊNCIAS

HENDERSON, J. L.. The cultural unconscious, In Shadow and self: Selected papers in analytical psychology. Wilmette, IL: Chiron. 1990

SAMUELS, A.  Psique Política. Rio de Janeiro: IMAGO, 1995

JUNG, C.G. Psicologia do Inconsciente, Petropolis: Vozes, 1999.

JUNG, C.G. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1988.

KLIMBES, Samuel, L. . Cultural Complexes and Collective Shadow Process. In: BEEBE, J. (org). Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 211-234). Canadá: Daimon, 2003.

SINGER, T. Cultural Complexes and Archetypal defenses of the group spirit. In: BEEBE, John. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 191-211). Toronto: Daimon, 2003

SINGER, T, & KAPLINSKI C. “Cultural Complexes in Analysis in STEIN, M.(org)Jungian Psychoanalysis: Working in the Spirit of C.G. Jung, Chicago: Open Court Publishing Company,. 2010.

TRISTÃO, K.G. Capsij como lugar de cuidado para crianças e adolescentes em uso de substâncias psicoativas (Tese de doutorado), Programa de Pós-graduação em Psicologia UFES, Vitória, 2018. Disponivel em:  http://repositorio.ufes.br/jspui/bitstream/10/9113/1/tese_9223_TESE%20Kelly%20Guimar%C3%A3es%20Trist%C3%A3o.pdf


[1] Fabricio Fonseca Moraes é psicólgo clínico, especialista em Teoria e Prática Junguiana (UVA), especialista em Psicologia Clínica e da Familia (Saberes), Coordenador de Grupos de Estudos e Diretor do CEPAES (Centro de Psicologia Analítica do ES).

[2] Kelly Guimarães Tristão é psicóloga clínica, Doutora em Psicologia – UFES, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA), Professora Universitária , Diretora do CEPAES (Cenro de Psicologia Analítica do ES)

[3] Confira McGUIRE, William., ; HULL, R. F. C., C.G. Jung: Entrevistas e Encontros; Ed.Cultrix, São Paulo, 1982

[4] who were deeply wounded and limited by the charges of anti-Semitism against Jung and his followers. After World War II and the Holocaust, few wanted to take up the subject of “national character” or cultural complexes for fear of being tainted by  allegations of discrimination or, far worse, of contributing to justification of genocide.

[5] an area of historical memory that lies between the collective unconscious and the manifest pattern of culture [and] has some kind of identity arising from the archetypes of the collective unconscious, which assists in the formation of myth and ritual and also promotes the process of development in individuals. (p. 103)

[6] “these negative aligenments truly form an “axis” in the sense that a direct line or conection is drawn between the daimons o fone group, protecting their sacred center, and the daimons of a rival group, protecting their sacred center. Such negative alignments create the condictions for eruption of incomprehensible violence, destruction and impulse to destroy. By making the link betweein defenses in one group and the demonic defenses of another, they form, most potently, the conditions  in the cultural unconscious for the wholesale emergence of evil, and that, in the cultural unconscious, is the true “axis of evil”.

[7] Historicamente, pois, não foi um discurso de campanha, mas presente ao longo da carreira política do deputado.

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Live Sobre Psicologia Analítica!

Hoje realizamos uma live bem bacana no instagram a convite da querida psicóloga Pâmela Santiago de Oliveira Altoé, que está com um projeto bacana de lives apresentando as psicologiaS em seu instagram (@psicologapamelasoaltoe) , assim o CEPAES foi convidado para apresentar a Psicologia Analítica!

Compartilhamos com vocês esse encontro que foi muito legal!

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“O Luto de Nós – breves reflexões junguianas sobre a Pandemia da Covid-19”

( Texto postado orginalmente no site do CEPAES, em 28 de março de 2020)


Diante da Pandemia do Covid-19 somos convocados a pensar, a trabalhar e elaborar simbolicamente os efeitos dessa pandemia e do isolamento social em nós mesmos, em nossos pacientes e na sociedade. No grupo “Aion – Estudos Junguianos” [i] refletimos sobre essa realidade que vivemos dialogando com o texto de Jung, “Depois da Catástrofe” de 1945, fazendo um paralelo com o pós-guerra e com a crise que atravessamos. 

No texto de 1945, Jung afirma “A visão do mal acende o mal na própria alma. Isso é inevitável” (Jung, 1990 p.22), é uma noção fundamental pois, apesar do isolamento físico, não estamos isolados psiquicamente. Assim, estarmos diante  de tantas imagens e informações que geram medo, desespero, e outros afetos que nos circundam sem ser afetados de algum modo. Inevitavelmente, diante do drama ou do sofrimento humano também tomamos parte desse sofrimento – algumas vezes de forma velada, outras explicitas.  

Em algumas situações, podemos negar esses afetos – racionalizando ou focando em atividades externas, controlando rigidamente as atividades, ou com pensamentos defensivamente positivos. Em outros, somos tomados por esses afetos que podem se manifestar em crises de ansiedade ou pânico (que não se manifestara antes), pensamentos obsessivos e/ou comportamentos compulsivos (como as compras excessivas, estocagem de alimentos etc.) e fantasias que visam atribuir um sentido, racionalidade ou intenção ao vírus.

Uma terceira via seria aceitarmos nosso medo, falarmos dele, conversarmos buscando integrar essa realidade interior, perceber o que é nosso e o que vem da coletividade. Elaborando os diferentes afetos nas ações/atividades que provem segurança e estabilidade ao Ego dos indivíduos.

Desse modo, os afetos que experimentamos nos coloca num mesmo drama coletivo. Não somos imunes ao espírito do tempo, nem aos afetos mobilizados no inconsciente. No texto citado, Jung utiliza uma noção delicada de “culpa coletiva” que devemos observar com cautela – a culpa coletiva nos remete a um sentimento de solidariedade que nos torna participantes do drama coletivo – saindo da polarização algoz-vítima. Pois, como diz um ditado italiano “no fim do jogo o rei e o peão voltam para a mesa caixa”. Sair da polarização implica assumir a responsabilidade sobre si mesmo e sobre o outro, isso não significa ignorar os erros, mas sim considerar os erros visando a reparação solidária e coletiva dos erros – não acusar e subjugar a quem quer que seja.

O sentimento de solidariedade (advindo da culpa coletiva) possibilita a relação de cuidado consigo e com o outro de forma saudável e construtiva (como integração do dinamismo da alteridade).

“A consciência da culpa oferece condições para transformação e melhoria das coisas. Como se sabe, aquilo que permanece no inconsciente jamais se modifica e as correções psicológicas são apenas possíveis no nível da consciência” (Jung, 1990, p.36 – pr.440)

Enxergar através das polarizações (direita x esquerda, pró x contra quarentena, quem estoca x quem não estoca alimentos/remédios/álcool gel) é importante para evitarmos os julgamentos morais e percebermos o fato psíquico, as dinâmicas que nos movem nesse período.

Sob certo aspecto podemos pensar nesse período como o atravessar de um luto, luto dos entes queridos, o luto de nossas certezas (a de nossos planejamentos, rotinas, de nossa saúde), luto da liberdade e o luto de nossas ilusões de controle. Essas perdas mobilizam diretamente nossas defesas – condizentes as descritas por Elisabeth Kubler-Ross quando descreveu como etapas do luto negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Contudo, nas famílias, nas redes sociais notamos esses diferentes estágios do luto simultâneos –nega-se a gravidade da crise, racionalizando atividades como se tudo estivesse normal; vemos as reações de raiva assim como notícias do aumento dos casos de violência doméstica e feminicídio; barganha-se com promessas para  de um futuro incerto, barganha-se com a saúde comprando litros de álcool em gel, com promessas religiosas destituídas de contato com o sagrado; a depressão se dá muitas vezes no cansaço, sono, tédio e melancolia, o distanciamento da vida. A aceitação implica compreensão das mudanças pessoais e coletivas, possibilitando rearranjos internos e externos, assim como exercícios e atos de genuínos de solidariedade.

Assim como a perda de um ente querido exige de nós um redimensionamento das nossas relações afetivas (internas e externas), uma reorganização dos papéis sociais (nossos e dos outros), uma reconstrução de projetos e perspectivas; do mesmo modo a incerteza e a perda das ilusões (de controle) nos colocam diante da mesma necessidade de nos reorientarmos diante da existência.

As milhares de mortes ao redor do mundo certamente acende em nós o medo explicito ou velado da morte. Isso nos coloca diante da fragilidade de nosso sistema de crenças – seja a fé na ciência ou na religião. Vemos muitos grupos religiosos desconectados que estão em negação ou barganha diante dessas incertezas, aumentando o sofrimento. É uma situação delicada, pois, a religião é a possibilidade olhar através da morte, vislumbrando significados e possibilidades estão para além da perspectiva científica.

A noção do luto coletivo que vivemos é importante para compreendermos as distintas manifestações do sofrimento que nos chegam pelas diferentes formas. Pensar nessas manifestações em como somos afetados nos ajuda a contribuir com a elaboração e enfretamento desse momento. Devemos ressaltar que, apesar do sofrimento, isso não diminui a responsabilidade individual e coletiva acerca de nossas escolhas, acolhendo as decisões técnicas que visam preservar as vidas, mesmo que isso signifique a manutenção do isolamento social.

Referência Bibliográfica: 
 

JUNG, C.G., aspectos do Drama contemporâneo, Petrópolis:Vozes, 1990  


[i]No dia 23/03  tivemos nosso primeiro encontro on-line do Aion por conta da Pandemia da COVID-19, de modo que este texto é baseado na discussão do Aion. Agradeço a todos os membros do Aion que contribuíram para essa discussão.

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Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Diretor do Centro de Psicologia Analítica do CEPAES. Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  desde 2012 Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

http://www.cepaes.com.br

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Novo Episódio no “Amplificando Jung”

Estamos com mais um Episódio em nosso podcast “Amplificando Jung! O tema atual é a “Psicoterapia e a analise Junguiana” onde a dra. Kelly Tristão nos apresenta suas distinções e aspectos básicos!

Quer ouvir? Clique no link: Amplificando Jung

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As Defesas do Self e a Experiência Traumática

Nota: Texto apresentado na IV Jornada Junguiana na Multivix em 15/06/2019. Publicado originalmente no site do CEPAES.

A psicologia analítica é uma abordagem ampla e heterogênea, que comporta uma diversidade pensamentos. No Brasil, temos uma presença mais clara do pensamento clássico e da psicologia arquetípica. Contudo, gostaria de trazer para vocês hoje uma reflexão pautada no pensamento inglês, na chamada escola desenvolvimentista – que tem como expoente o analista inglês Michael Fordham, cujo pensamento vem sendo uma influência muito importante para o CEPAES.

A Escola Desenvolvimentista recebeu essa nomenclatura dada por Andrew Samuels por enfatizar os processos de desenvolvimento, isto é, a infância, e seus desdobramentos na vida adulta e nos processos transferenciais e manejo clinico.

Assim, nossa proposta é falar das defesas do Self e a Experiência traumática dentro desse enquadre teórico, para tanto precisamos fazer algumas contextualizações refletir acerca do Self no processo desenvolvimento das relações com o ambiente. 

O Self e o desenvolvimento

Jung definiu o Self como o arquétipo da totalidade e centralidade, isto é, como sendo o centro e a totalidade da psique, juntamente com o atributo de ser o centro organizador da psique. Como o trabalho de Jung se direcionou aos processos do desenvolvimento adulto, em especial, da meia idade onde os processos integrativos do Self se manifestavam de forma intensa e simbólica, ao que Jung denominou, o processo de individuação e, assim a realização do Self.

Os estudos de Jung acerca do Self, tomaram novos contornos quando aplicados ao processo de desenvolvimento na infância. Um dos pioneiros da análise de crianças foi Michael Fordham, que em 1935 começou o atendimento de crianças na Inglaterra, que eram vítimas dos traumas de guerra (crianças evacuadas das cidades), crianças psicóticas e com transtorno do espectro autista . Deve-se notar, que Fordham desenvolveu seu trabalho em paralelo com o trabalho de Melaine Klein e do Middle group da sociedade psicanalítica de Londres, com pensadores como Winnicott, Fairbain, Bion dentre outros, com os quais Fordham se relacionou e ampliou as discussões teóricas.

Em sua prática, Fordham observou que havia uma autonomia na atividade inconsciente, que impelia a criança ao desenvolvimento desde que houvesse um ambiente adequado ou um ambiente suficiente bom. Observando que a tese defendida por Jung de que as neuroses ou transtornos  infantis eram uma derivados das neuroses dos pais era uma visão parcial e limitada, pois, as crianças tinham conflitos infantis próprios da criança e assim como derivados o ambiente (na relação com os pais), por outro lado, observou que independente de grandes mudanças na dinâmica parental ou na neurose dos pais haveria sim uma melhora significativa da criança e de seus processos de amadurecimento ou de individuação. A atividade do self seria  ativa e intensa desde a vida intra-uterina.

Em 1957, Fordham publicou o livro “New Developments in Analytical Psychology”, prefaciado por Jung, onde ele apresentou as bases de sua teoria acerca do desenvolvimento e do Self. Para Fordham, a criança na primeira infância não teria uma experiência propriamente psíquica, a experiência compreendida como psicossomática, com  um Self integrado, onde não haveria uma distinção entre corpo e Psique, nem ainda haveria um Ego, a esse Self original, manifesto como uma unidade psicossomática, ele chamou de Self primário (que  correspondia ao que Neumann viria a chamar de “fase uriborica” ou self corporal).

Como unidade psicossomática, os processos do Self primário do bebe, estão associados a processos fisiológicos, que seja pela necessidade (fome, saciedade, frio, incomodo tátil, incomodo intestinal) ou por estimulação do meio (luz, som, movimentação, cuidado) estariam ativariam diferentes aspectos Self, a ativação a possibilidade arquetípica de reconhecimento e ter respostas (de satisfação ou insatisfação) Fordham chamou de “deintegração” a essa ativação de diferentes aspectos do Self– com o processo de descanso, sono, essa atividade do Self seria reintegrada, formando as bases para o processo de desenvolvimento.   

Ainda não há uma consciência capaz de sustentar imagens, representações, nem distinção de realidade interior ou exterior. Para a criança, a mãe não é percebida em totalidade ou como outro, a mãe é uma experiência que supre suas necessidades. Por esse motivo, por não haver distinções, nem representações, logo, nem símbolos, falamos de objetos.

Essas locais e situações que ativam o processo de deintegração-reintegração  do Self, são chamados de primeiros objetos do Self, ainda indiferenciados, apenas elementos onde a atividade a energia ou libido se direciona, com o tempo objetos do Self, em formam em si pequenas ilhas de consciência,  núcleos esparsos de consciência, as representações do Self, com o processo de amadurecimento e a atividade integradora do Self, esses núcleos ou representações do Self, vão se integrar dando origem, ao longo de um longo período da primeira infância ao Ego.

Os Self e os Processos Integrativos

Até aqui, descrevi um pouco dos processos do Self, contudo, o processo de amadurecimento neurológico e fisiológico do bebe e os cuidados maternos o colocam em relação com o ambiente – com o entorno que ainda é indistinto para a criança, mas, que aos poucos vai se apresentando como uma realidade que ela não é capaz de controlar, percebendo como um objeto distinto de si mesma. A medida que a criança adquire uma capacidade de se relacionar com objetos (o mamilo da mãe, os brinquedos, as roupas, as sensações) que qualitativamente se manifestam como satisfatórias ou positivas (que produzem saciedade) ou insatisfatórias ou negativas (que produzem insasciedade) essas experiências produzem os objetos de apreço ou de rejeição, os objetos bons e maus.

Com o amadurecimento das funções sensoriais que possibilitam a relação com o ambiente, assim como o desenvolvimento da memória, que sustentam a experiência de onipotência( como se fosse capaz fazer aparecer o objeto bom – o seio no caso da fome, ou afastar o objeto mau, o incomodo com as roupas ou fraudas)  essa onipotência está relacionada com  da criança se torna capaz a sustentar a imagem percebida mesmo na ausência do objeto, ou mesmo evoca-la, alucinando a presença do objeto bom, de satisfação – ou pode alucinar negativamente o objeto mau, de desprazer.

Esse processo de alucinação é a base do processo de representação, da construção de consciência. Nesse processo alucinatório toma elementos da percepção de objetos externos e os mescla sensações ou afetos interiores – numa identidade psíquica ou, como Jung nomeava, utilizando de Lévi-Bruhl, participação mística.

A relação com os objetos ainda indiferenciados e o gradativo processo de amadurecimento possibilita o processo de diferenciação entre os objetos, onde os objetos externos são preenchidos com os objetos internos, formando um campo representacional que não corresponde nem a realidade interior nem a exterior, mas intermediária. Winnicott denominou essa área de “espaço potencial”, onde se desenvolvem os “objetos transicionais”, que são os primeiros símbolos do Self, expandindo as possibilidades da consciência de uma função basal adaptativa para uma função simbólica e representacional da consciência.

O espaço potencial é um espaço distinto da realidade interior e exterior, mas, se constitui na interpenetração das duas. Esse é o espaço representacional, imaginal onde é possível se constituir a função transcendente e a elaboração simbólica. Para tanto, é necessária uma relação adequada ou suficientemente boa com o ambiente, expresso nas relações ambientais.

Os processos de constituição do Ego e das relações objetais vão caracterizar o processo individuação na infância.

O Ambiente

O ser humano se torna humano mediante a relação com outro ser humano. Nosso ambiente para além do ambiente natural é o ambiente simbólico. Assim, para a criança em seus primeiros anos a mãe não é uma pessoa, mas, é o ambiente da criança. A relação com a mãe vai mediar a relação com os objetos. Contudo, devemos compreender que a mãe é a primeira experiência de ambiente, mas, estão se restringe a ela. Ao longo da infância a relação com o ambiente relacional, familiar e social vai possibilitar a humanização do potencial arquetípico fornecendo ao ego recursos que serão referência – seja participando da organização, estabilidade e força do Ego ou na dinâmica dos complexos – para futuras relações com o ambiente ou realidade.

As relações objetais irão compor os padrões de resposta que serão integrados tanto a experiência de constituição do Ego quanto a experiência dos complexos. Quando falamos num ambiente “materno suficientemente bom” na infância nos referimos a um ambiente de segurança e nutrição, onde a criança poderá estabelecer relações e vínculos saudáveis e uma capacidade simbólica que possibilita elaborar as adversidades sem um risco maior a estrutura do Ego.

Ao longo da vida, as experiências com o ambiente, que podemos nomear aqui como psicossociais, vão interferir diretamente nas relações que o ego estabelece tanto consigo mesmo quanto com o ambiente. Essas experiências podem ser desde mudanças na família, trabalho e idade, e implica no estabelecimento de uma nova possibilidade de amadurecimento.

Apenas um aspecto fundamental: O ambiente é sempre relativo a uma realidade psíquica. Ou seja, devemos compreender o ambiente em relação a quem indivíduo, isto é, ao ego que está em relação com o ambiente. O Ambiente é sempre relacional.

As Defesas do Self  

Em 1974, Fordham publicou um pequeno artigo chamado “Defences of The Self” onde, a partir de uma discussão clínica acerca da transferência psicótica, apontou de forma mais clara uma categoria de defesa que não se relacionava com defesas do Ego, mas, defesas intensas que não distinguiam o objeto em si, mas, eram defesas totais, manifestas como proteção contra a ameaça, abandono ou risco de destruição. Esse tipo de defesa, promoveria uma forma de barreira de proteção contra total contra o objeto ou o ambiente que é compreendido como nocivo ou ameaçador.

Fordham também utiliza uma analogia realizada pelo analista Leopold Stein, onde os aspectos defensivos atuariam com ao sistema autoimune, e em determinados casos que poderiam se voltar contra própria a própria psique, impedindo o desenvolvimento de relações objetais, da simbolização ou mesmo do processo de individuação.

Essas defesas do Self se caracterizam pela identificação projetiva, idealização, atuação (act out), somatização e regressão (dentre outras).

Em si, as defesas do Self apontam para a autonomia e capacidade do Self, desde o início do processo de desenvolvimento, em estabilizar, regular e manter a possibilidade de vida. A questão é quando os processos de defesa se mantém tempo demais, ficando fixada e aí assumem um caráter patológico.

Isso envolve um ataque à própria capacidade de experienciar a si mesmo, o que significa “atacar os vínculos” entre imagem e afeto, a percepção e pensamento, a sensação e conhecimento. O resultado é que essa experiência se torna sem sentido, a memória coerente é “desintegrada” e a individuação é interrompida.” (Kalsched, 2013 p. 76)

É importante considerarmos os processos defensivos do Self como base para se pensar transtornos do desenvolvimento como o transtorno do espectro autista, assim como pensar transtornos de personalidade como esquizóide, borderline dentre outros. Esses transtornos estão associados a experiências do Self, que interferem diretamente na experiência e formação do Ego – prejudicando o processo de vinculação, autopercepção, elaboração simbólica dentre outros.

As defesas do Self  cujo processo defensivo não é atualizado (ou seja, não evolui como as defesas egoicas), implica numa fixação do processo defensivo que, Donald Kalsched, descreveu como ataque aos vínculos e proteção do “espírito pessoal” ( uma forma de nomear o Self em seu aspecto dinâmico na experiência individual).

Apesar de serem descritas desde os primórdios do desenvolvimento,  as defesas do Self não devem ser compreendidas como apenas pelo escopo do desenvolvimento, diante de uma experiência que ameace a vida ou a integridade física podem ser ativadas de modo em situações onde a ameaça a vida, a integridade psicofísica e tal forma que as defesas do Ego não suportam. Assim, as defesas do self atuam como uma segunda linha de defesa (ainda que mais radical) para garantir a sobrevivência do Self, mesmo que sacrificando processos importantes do Ego.

A experiência Traumática e o trauma

As defesas do Self estão intimamente associadas a experiência traumática. Esta seria uma experiência insuportável que ameaça alguma forma a continuidade da vida.  Kalsched define “o trauma é uma experiência aguda ou acumulativa que nos estilhaça. O estilhaçamento é tanto o evento exterior que nos choca e o evento interior que chamamos de dissociação. ” (kalsched , 2010.p. 284 – tradução nossa) Essas experiências pode ser de Abandono afetivo, Abuso/Violência física, abuso/Violência sexual, Duplo Vinculo, Rejeição, Bullying, e, muitas vezes, ouvimos a expressão “era coisa se algo quebrasse dentro mim”.

É importante notar que esse sofrimento que estilhaça não tem lugar na psique, não é metabolizado em si, a defesa do self se instaura como uma forma afastar ou tentar neutralizar aquilo que de outra forma é insuportável, esse processo se dá especialmente pela divisão da experiência. Em outras palavras, separando afeto – imagem, Comportamento(ação) – Significado,  Compreensão – Percepção.

 A própria psique, ou o aspecto sombrio do Self, se incumbe em manter a dissociação, atacando os processos simbólicos (ou seja, integrativos), rompendo os vínculos exteriores assim como os vínculos interiores, que de outra forma poderiam integrar essa experiência. A própria psique atua como se reproduzisse a experiência do trauma em sonhos, sensações, intuições. Mantendo o processo dissociativo, evitando que vínculos de confiança.

vemos na personalidade saudável a luta em direção a um relacionamento equilibrado entre as energias do ego e do Self, de maneira que as energias do Self impregnam o ego, mas não o subjugam, nem lhe fornecem substitutos para gratificações humanas. A libido pode ser transferida através do limiar ego/Self e investida nas relações amorosas, interesses, compromissos etc. No trauma, contudo, a história é diferente. O sistema de autocuidado resiste a todo investimento da libido “nesta vida”, a fim de evitar uma ulterior devastação. As energias do mundo numinoso tornam-se, então substitutos para a autoestima que deveria proceder de gratificações personificadas no mundo humano. O transpessoal é colocado a serviço da defesa. (KALSCHED, 2013, p. 256)

A investigação dos processos de desenvolvimento é importante, pois, pessoas que vivenciaram trauma precoce não trazem a memória esses fenômenos traumáticos ou muitas vezes falam dele como se já estivesse sido elaborado. O trauma precoce ou o trauma na vida adulta, vão se caracterizar pela através da predominância das defesas (como citamos, de identificação projetiva e introjetiva, idealização, somatização, atuação e regressão) mais perceptível em transtornos de personalidade (esquizoide, narcisista, border-line, antissocial etc). Mas, também é comum em transtornos ansiosos e depressão onde a dificuldade autopercepção, confiança ou mesmo de percepção do ambiente.  São pessoas seguem na vida de forma funcional, em outras palavras, são pessoas que são bem adaptadas, produtivas, contudo sem uma experiência simbólica, onde a identificação com a persona, substitui uma experiência vida interior e significado.

Em certos casos, a sensação de ameaça, a impossibilidade de elaborar simbólica o sistema de autocuidado arquetípico levar o indivíduo ao suicídio, com uma defesa última a um sofrimento impensável.

Algumas considerações

Para finalizar, gostaria apenas de considerar alguns pontos

O modelo de desenvolvimento apontado por Fordham nos permite aprofundar nos quadros clínicos graves e os aspectos destrutivos ou defensivos da psique, compreendendo sua psicodinâmica dentro da uma perspectiva da individuação.

Na clínica é fundamental compreender a interação dialética com o ambiente – seja, ele passado, presente e o ambiente terapêutico ou transferencial. Nesse sentido, a compreensão do ambiente deve ser desde a perspectiva do indivíduo.

A reconstrução do eixo ego-self é um processo que precisa integrar as polaridades dissociadas da experiência do indivíduo, para tanto é necessário um ambiente suficientemente bom, isto é, um temenos capaz prover uma relação saudável  que possibilite o ego confrontar as defesas primitivas e abrir novas possibilidades de experiências.

Referência bibliográfica

KALSCHED,D. Working with Trauma in Analysis, in STEIN, M(org) Jungian Psychoanalysis, Chicago: Open Court, 2010

KALSCHED,D. O Mundo interior do Trauma, São Paulo:Paulus, 2013

Outras referências utilizadas

Astor, J. Michael Fordham: Innovations in Analytical Psychology. London: Routledge. , 1995

Fordham, M., The self and autism. The Library of Analytical Psychology Vol. III. William Heinemann Medical Books, London, 1976  

Fordham, M Explorations into the Self, Library of Analytical Psychology, Volume 7, London: Academic Press, 1985.

Fordham, M  New Developments in Analytic Psychology. London: Routledge & Kegan Paul, 1957

KALSCHED D.  Archetypal Affect, anxiety and defence in patients Who hace suffered early trauma  CASEMENT, ANN (ed.). Post-Jungians Today: Key Papers in Contemporary Analytical Psychology. London & New York: Routledge, 1998.

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Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Diretor do Centro de Psicologia Analítica do CEPAES. Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  desde 2012 Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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