Medeia – Mito ou Poesia?

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Este trabalho traz o Mito de Medeia, tragédia grega retratada por Eurípides no qual Medeia, princesa da Cólquida, insatisfeita em seu lar, vê em Jasão uma oportunidade de sair daquela pequena cidade. Uma mulher forte e inteligente, cega por ciúme, amor, traição, sente-se rejeitada por seu marido ao ser trocada por uma mulher mais jovem, que daria a ele poder de ascensão a um trono na Grécia – a Cólquida ficava fora da Grécia e Jasão havia perdido seu reino após o assassinato de seu tio.

Walter Boechat ratifica a importância essencial da mitologia na formulação da teoria da psicologia analítica, bem como a fundamentação arquetípica do pensamento inconsciente. Em A Mitopoese da Psique (2008), Boechat  traz à luz aspectos a serem considerados não apenas como conceitos teóricos, mas mas também como ferramentas para ampliação de sentidos na prática clínica. Para ele, a concepção fundamental de que o pensamento inconsciente é circular — isto é, mitológico — dá forma a toda a elaboração conceitual dos arquétipos e do processo de individuação. A mitologia ocupa lugar essencial na formulação da psicologia analítica desde seus primórdios. Segundo Boechat, toda teoria psicológica nasce de uma psicopatologia que sustenta seu construto teórico. No caso de Jung, a concepção fundamental de que o pensamento inconsciente é circular, ou seja, mitológico, dá forma a toda a elaboração conceitual dos arquétipos e do processo de individuação. (Boechat, 2008)

Dessa forma, ver Medeia em toda sua potencialidade é muito rico para a clínica. Medeia ser Mito ou Poesia é o grande espectro que ela pode atingir – sendo vista como vilã ou vítima. Um mito que a torne sinônimo de irascibilidade ou um poema que a apresente como uma mulher que deu tudo de si por amar. Retratada como irascível, capaz de matar seus filhos, ciumenta, a grandeza de Medeia é frequentemente esquecida — seu companheirismo e sua importância na vitória de Jasão, o argonauta em busca do Velocino de Ouro. 

Medeia traz à cena o lado vingativo da mulher, aquilo que a cultura não costuma reconhecer como feminino e que não corresponde ao estereótipo da delicadeza: raiva, ira, oposição, poder, violência e vingança. A visão da mulher como frágil é deixada de lado por Medeia, que toma seu destino em suas mãos e reescreve sua própria história desde a saída da Cólquida.

“Há ainda outro emblema, que a mitologia relaciona com Medeia e que com frequência a representa, indicando sua origem no mundo dos deuses: ela está passeando num carro puxado por serpentes aladas. É provável que, originalmente, Medeia fosse uma deusa pré-helênica da arte de curar e da sabedoria e que, com o tempo, tivesse sido minimizada, obscurecida e personificada até mergulhar no mundo das lendas.” RINNE, 2020 

Era conhecida na Cólquida por sua prudência, pela arte de curar e pelos poderes mágicos. A mulher, no entanto, quando se percebe desconsiderada em seus direitos, dignidade e autoconsideração, expressa a ofensa contra si mesma com raiva, depressão e ódio de si. Para Rinne (2020), a história de Medeia retrata o efeito destrutivo que o “grande amor” pode ter. A exclusividade de sentido da vida baseada em uma única relação se esvazia com o fim desta, e a reação se converte em rancor, vingança e autodestruição — sentimentos muitas vezes considerados “não femininos” e que, portanto, tendem a voltar-se contra a própria mulher.

Na psicologia junguiana, os mitos atravessam todo o corpo teórico e descritivo da psicologia dos arquétipos. A psique é vista como povoada de imagens, figuras e personificações, não apenas conceitos abstratos. Os conteúdos inconscientes aparecem como personagens vivos, divindades e forças anímicas.

Na prática clínica, essa leitura se torna fundamental. O movimento da libido inconsciente se dá por associações mitológicas, e ao identificar a imagem dominante no quadro clínico, o analista pode compreender não apenas o diagnóstico — a figura mítica que organiza o processo de individuação naquele momento —, mas também intuir o prognóstico e a direção da evolução psíquica. É nesse contexto que o método da amplificação criado por Jung se torna central: ele conecta a imagem pessoal do paciente a narrativas míticas, oferecendo vias de transformação simbólica.

Medeia também pode ser compreendida como expressão do feminino sombrio, dimensão arquetípica que guarda aspectos rejeitados pela cultura patriarcal e que, por isso, tendem a ser projetados ou reprimidos. Ao trazer à tona sentimentos de ira, ciúme, desejo de vingança e força destrutiva, ela se torna contraponto ao ideal da mulher dócil e submissa. Esse movimento, ainda que violento, rompe com o silêncio imposto e denuncia a impossibilidade de reduzir o feminino apenas à maternidade ou ao cuidado.

Do ponto de vista clínico, trabalhar com a imagem de Medeia abre espaço para que pacientes, sobretudo mulheres, possam reconhecer em si mesmos impulsos que muitas vezes são negados por não se encaixarem no modelo socialmente aceito. A clínica junguiana entende que esses conteúdos, quando não simbolizados, podem voltar-se contra a própria pessoa em forma de sintomas depressivos, autodestrutivos ou somatizações. Nesse sentido, a figura mítica funciona como espelho simbólico para acolher afetos considerados inconfessáveis, oferecendo linguagem e imagem para a experiência psíquica.

É importante ressaltar, ainda, que Medeia não se resume à violência. Sua trajetória também traz marcas de sabedoria, astúcia e potência criativa. Como guardiã de saberes mágicos e de práticas de cura, ela encarna a ambivalência do arquétipo: tanto pode destruir quanto restaurar, tanto pode vingar quanto proteger. Essa duplicidade faz dela um símbolo de complexidade, revelando que o feminino não pode ser reduzido a uma única face, mas deve ser compreendido como totalidade.

Na contemporaneidade, Medeia pode ser lida como metáfora das tensões relacionais e das dores de amor que ainda atravessam a experiência humana. As paixões que consomem, o desejo de reconhecimento, a busca por dignidade e a ferida da rejeição permanecem presentes em muitas histórias pessoais. Evocar Medeia na clínica é, portanto, uma forma de aproximar mito e experiência, ajudando o sujeito a perceber que seus dramas individuais também participam de um enredo maior, coletivo e atemporal.

Por fim, Medeia ensina que a individuação não se dá apenas pela integração dos aspectos luminosos do ser, mas também pelo confronto com forças destrutivas internas. A raiva, a frustração e a violência que ela encarna pedem elaboração simbólica, não para legitimar o ato em si, mas para transformar a energia psíquica que o sustenta. Dessa forma, o mito se converte em recurso terapêutico: amplia a consciência, oferece imagens de transição e possibilita que o sujeito ressignifique suas próprias vivências de perda, traição e abandono.

Medeia também pode ser lida como uma representação do conflito entre eros e poder. Jasão vê no casamento uma oportunidade de ascensão política; Medeia, ao contrário, investe seu destino na relação afetiva. Esse desencontro evidencia uma tensão atemporal: o risco de reduzir o vínculo amoroso a um cálculo social ou a um contrato utilitário. Do ponto de vista simbólico, a tragédia revela a fratura que se instala quando o desejo é instrumentalizado, e a alma fica submetida apenas à lógica da conquista ou da utilidade.

Outra dimensão importante é a do exílio e da alteridade. Medeia não é grega: é estrangeira, filha da Cólquida, e sua diferença a marca como figura liminar. O fato de não pertencer ao espaço helênico potencializa sua exclusão e reforça a leitura arquetípica da estrangeira como aquela que traz saberes ocultos, mas que paga o preço de não ter direito de voz. Essa condição de estrangeira pode ser pensada na clínica como metáfora da experiência de pacientes que se sentem deslocados, fora de lugar, carregando dons e dores que não encontram reconhecimento em seu meio.

Além disso, Medeia confronta a idealização da maternidade. Ao matar os filhos, rompe o pacto mais sagrado do imaginário cultural: o da mãe protetora e nutridora. É precisamente nesse excesso que a figura mítica se torna perturbadora, pois traz à consciência uma verdade incômoda: a maternidade também comporta ambivalências, frustrações e até agressividade. Trabalhar esse mito em contexto clínico permite abrir espaço para que mulheres falem de sua maternidade real, com dores, raivas e limites, sem precisarem se aprisionar em imagens idealizadas.

Finalmente, a imagem de Medeia pode ser pensada como uma advertência sobre a potência do afeto não simbolizado. Quando paixões intensas não encontram forma de expressão criativa, podem explodir em atos destrutivos. Nesse sentido, a clínica analítica busca oferecer simbolização — transformar a energia bruta em linguagem, sonho, arte, mito. O mito de Medeia, ao ser trabalhado, cumpre justamente essa função: oferece uma narrativa capaz de conter e elaborar afetos que, de outra forma, seriam vividos apenas como caos e violência.

Ver Medeia em toda sua potencialidade é muito rico para a clínica. Medeia ser Mito ou Poesia é o grande espectro qye ela pode atingir – sendo vista como vilã ou vítima. Um mito que a torne sinônimo de irascibilidade ou um poema que a Veja como uma mulher que deu tudo de si por amar.  

A paixão desmedida que atordoa, confunde, encanta traz um estado de esperança, expectativas, medos. As relações amorosas quando não cumprem as expectativas podem ficar no foco da preocupação por muito tempo e dispender muita energia.  

Jasão intentava poder. A ideia dele era ser Rei. O que ele sempre quis. Não importava de onde e o que precisaria fazer. Atravessar o mar, casar, abandonar filhos, casar de novo.  

Medeia queria Jasão. Medeia abandona família, mata irmão para distrair atenção, atravessa o mar, mata o tio de Jasão, mata o Rei Creonte, Jasão, seus próprios filhos. Por ira, ciúme, traição e amor.  

Amor. A quê?

De fora do centro do mundo  

De onde menos se esperava 

Lá estava a princesa sem reino  

O que mais tarde se revelava  

Jasão ali chegara, 

Argonauta como era, 

Em seu navio vindo de Argos 

Que tal não era sua terra 

Atrás do Velocino de Ouro 

Após ser criado por Quíron 

Jasão chega à Cólquida em missão  

Para enfim ter o seu tesouro  

Na Cólquida não conseguira  

Sucesso como previra  

Precisou da ajuda de Medeia 

Que fugir do reino intuira 

A Missão de buscar o Velocino 

Ao herói foi atribuída 

Era tida como destino 

A qual pagaria com a vida 

Medeia sem parcimônia 

Desvencilhou-se de sua família 

Ali já demonstrava 

Que sem cerimônia agia 

Atravessando o reino de volta 

Em busca de seu reinado 

Ao chegar em sua terra 

Seu tio era o coroado 

Medeia, então, intercedeu 

Buscou o ludibriar 

Primeiro, foi com um carneiro 

Em seguida, com o Rei, não deu 

Por causa do regicídio, 

O exílio foi seu caminho 

A construção do lar foi distante 

E durou bem mais que um instante 

No fim daquele tempo, 

Uma proposta Jasão recebeu 

Mas Medeia ficaria de fora 

E Jasão, incrivelmente, cedeu 

Medeia não aceitou 

Perder seu marido e status 

Mas ela era estrangeira, 

Não tinha direitos, de fato 

Jasão, o que sempre quis 

Era buscar um reinado para si 

Por vezes, ficou por um triz 

E agora? Será feliz? 

A filha de Creonte o esperava 

Após encontro com seu pai 

Corinto seria reinado de Jasão 

Pois o poder era o que amava 

Para atingir Jasão com dor 

À sua própria se expôs 

Matou seus filhos por ira 

Sem se preocupar com o depois 

Amor, ciúme e traição 

Poder, desejo e dinheiro 

O que era mais importante 

Para Medeia e Jasão?  

REFERÊNCIA 

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Volume III: Mito dos Heróis. Petrópolis: Vozes, 21. ed., 2015.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 2022.

BOECHAT, Walter. A Mitopoese da Psique. Ed Vozes, 2008

BOECHAT, Walter. O mito na teoria e na prática da psicologia analítica. Disponível em: https://www.academia.edu/7339584/O_MITO_NA_TEORIA_E_NA_PR%C3%81TICA_DA_PSICOLOGIA_ANAL%C3%8DTICA. Acesso em: 23 set. 2025.

GRAVES, Robert. Os mitos gregos. Tradução de Fernando Klabin. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. Recurso eletrônico.

RINNE, Olga. Medeia: a redenção do feminino sombrio como símbolo de dignidade e sabedoria. São Paulo: Cultrix, 2020.

Psicóloga Clínica e Neuropsicóloga. É graduada em Psicologia pelo IBMR e com especializações em Psicologia Analítica; na área de Perinatalidade; em Psicologia Sexual; e Especialista em Psicologia do Desenvolvimento Infantil e Adolescente, e Familia e Casais. Possui uma especialização em Neuropsicologia e Reabilitação Cognitiva. No Cepaes, oferece atendimentos online. (Atendimentos presenciais disponíveis no RJ).

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