(Texto apresentado na Semana da Psicologia da UVV, em 04 de setembro de 2014)
Boa noite a todos, aos colegas da mesa, gostaria de agradecer o convite da prof. Luciana Bicalho Reis, coordenadora do Curso de Psicologia da UVV, pelo convite.
O tema proposto para essa mesa é muito relevante, eu gostaria de abordar esses desafios de forma indireta, tocando em três outros pontos que eu considero devem fazer parte dessa discussão, esses pontos seriam: 1- Mídia, 2 – Religião e 3 – Formação.
O primeiro ponto que eu ressalto como desafio à clínica é a Mídia. Pois, a mídia é uma força poderosa em nossa consciência coletiva, direcionando o modo de ver, pensar e sentir a população. A relação da clínica com a mídia passa numa primeira instancia pela forma como a clínica é retratada ou representada pela mídia, que é aquela de forma caricaturada na velha imagem do terapeuta mudo atrás do divã OU mesmo simplesmente omite a clínica, tornando-a invisível. Esse arranjo de caricaturar por um lado e tornar invisível pelo outro é extremamente nocivo. Não só porque passa uma imagem equivocada da prática clínica, mas, especialmente tende a confinar a clínica às quatro paredes tradicionais de um consultório.
Pois, a clínica é um nome que nos permite falar de infinitas possibilidades de uma relação terapêutica, que se dá no encontro. Que pode se dar no consultório, no hospital, nos postos de saúde, nas instituições, na rua (como é o caso do acompanhamento terapêutico). A Clínica é a relação, não são paredes. O espaço deve ser adequado a pessoa atendida, mas, não precisa ser nesses moldes “clássicos”. Eu acredito que a mídia se coloca um desafio para que a população compreenda a amplitude do que é a “clinica psicológica”.
Por outro lado, a mídia é uma reforçadora do sofrimento psíquico na medida que normatiza o que seria o “bem estar”, a “saúde”, o sucesso e o “belo” – numa perspectiva massificada. Podendo produzir e Agravando o sofrimento de quem não está dentro desse critério de “bem-estar”. Resultado disso, é um número crescente de pessoas que perdem o sentido de sua existência – seja com o aumento dos números da depressão, de suicídios; – do uso abusivo de medicação – Diga-se de passagem, a medicação pode ser é excelente, muitas vezes fundamental para paciente, quando necessária e bem prescrita. Mas, infelizmente, não é bem essa nossa realidade. O abuso e a dependência de psicofármacos é uma realidade crescente em nosso cotidiano, que é alimentada por esse modelo de “saúde e bem-estar”, e que muitas vezes, os profissionais em psicologia compram “esse modelo” tentam ajustar o paciente a essa “norma”. É interessante que já nos anos 70 um analista junguiano, Adolf Guggenbuhl-Craig, dizia
De acordo com a fantasia de saúde contemporânea, devemos nos tornar sãos; qualquer defeito, mau funcionamento deve ser superado. Em outros tempos, as pessoas prosseguiam através da vida com um temperamento melancólico; hoje as mesmas pessoas têm que engolir fortes medicamentos até que se tornem descontraídas e estupidamente felizes. […] (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 103)
Isso em 1979, é interessante pensar que se os avanços em psicofarmacologia tivesse ocorrido no século XIX, nós não teríamos Schoppenhauer, Van Gogh, Nietzsche(que bebeu e mergulhou nas aguas profundas de schoppenhauer), Alvares de Azevedo, dentre inúmeros filósofos, pensadores e artistas.
E, esse “se tornar” descontraídas e estupidamente felizes é basicamente entrar no “mise en scène” midiático. Jung dizia que “somente o que realmente somos tem o poder de curar-nos” a mídia acaba por continuamente nos destituir desse lugar, de nós mesmos – produzindo “zumbis” dopados e sempre famintos para consumir algo que dê sentido a existência.
Bem, não basta criticar a mídia, o capital, os médicos e a industrias farmacêuticas – temos que ter autocrítica – pois, muitas vezes, não buscamos os meios para combater esses fenômenos. Pois, em nossa categoria profissional os “clínicos” são os que mais se distanciam dos debates da categoria, menos se mobilizam, e acabam por omissão fortalecendo a mídia, a medicalização, etc. Acredito que romper os “limites” do consultório, do silêncio, da desmobilização são desafios importantes para a clínica.
O segundo ponto e talvez mais polêmico em nossos dias é a religião, ou melhor, o uso que é feito da religião – tanto num aspecto externo quanto interno. Quando me refiro ao aspecto externo, me refiro a religião vem se apresentando em nossa sociedade, em especial as denominações marcadas pelo caráter evangelical e pentecostal/neopentecostal. Pois, nessas denominações é que encontramos situações onde, motivadas pelos certos líderes religiosos, os fiéis são estimulados a pensar que todo sofrimento psíquico é tem origem espiritual, e que basta a ter fé que serão curados, ou seja, o sofrimento psíquico é extremamente banalizado – e isso, é extremamente grave, quando pensamos que é enorme a parcela da população que busca primeiro nas religiões o alivio para seu sofrimento seja ele psíquico ou físico. Como consequência dessa banalização do sofrimento psíquico o que acontece é o agravamento do quadro, tanto pelo progresso natural do transtorno, quanto pelo afastamento do indivíduo de seu grupo religioso, pois, ele se sente indigno ou inferior.
Nessa mesma linha vão os discursos ideia de que o fiel não precisa de psicólogo porque Jesus é o psicólogo dos psicólogos, ou mesmo outras ideias como a psicologia defende o ateísmo. São situações que se colocam como desafios ao cuidado. Entretanto, acredito que há o desafio maior é o diálogo com esses indivíduos. Pois, a forma como lidamos com a religião no contexto da clínica deve ser pensada com atenção. Existe uma dissertação de mestrado de Andreia Coliath, defendida 2008, que tem como titulo “A escolha do terapeuta associada a denominação religiosa”,. Em sua pesquisa ela constatou motivos pelos quais ocorre essa escolha, dentre os motivos, ela diz
o fato de se sentirem mais confortáveis em poder tratar seu lado emocional e relatar suas experiências espirituais a alguém que os entendessem sem considerar que são manipulados por líderes evangélicos interessados em poder e dinheiro. (COLIATH, 2008,p. 13)
eles desejam ser compreendidos em relação a sua religiosidade. Não querem ficar o tempo todo explicando o que desejam dizer quando falam de suas experiências religiosas, e ainda assim, correrem o risco de serem classificados de fanáticos ou loucos (p. 15)
são elementos que devemos levar em consideração, por que diz respeito ao cuidado. No Brasil, não temos uma área específica de “Psicologia da Religião”, ela fica dívida entre as ciências da religião, psicologia clínica e social. É um desafio importante o clínico conhecer, respeitar e lidar com o fenômeno religioso.
Uma outra nuance desse mesmo desafio, que vem se tornando cada vez mais um fenômeno a ser seriamente considerado pela psicologia, são os “psicológos religiosos” (uso esse termo englobando essas terminologias de psicólogos cristãos, psicólogos espiritas, psicólogos xintoístas etc…) pois, na verdade eles surgem nessa lacuna que criada pela falta de diálogo entre a clínica e a religião. De fato, é preocupante pois, quando se mistura a prática da clínica com as concepções religiosas se cria uma pratica pautada na moral e doutrina religiosa não muito diferente da atividade pastoral. Esse assim chamado “psicólogo religioso” com sua doutrina e pressuposições religiosas deixam pouco espaço para o cliente se colocar, até porque o cliente fantasia acerca dos pensamentos e possíveis “julgamentos desse psicólogo religioso”.
Jung tinha uma visão interessante a esse respeito, segundo ele
“(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente” (Jung, 2000., p.154)
Tanto a crença quanto a “não-crença” podem violentar o indivíduo que busca ajuda. Ou seja, tanto o ateísmo ou a crítica religiosa cega quanto a imposição da fé (também cega) tiram a proteção e o espaço que deveria haver nessa relação terapêutica, que diga-se de passagem deveria ter como foco é a pessoa atendida em sua totalidade, não a religiosidade ou não-religiosidade do terapeuta. O diálogo com a religião, a capacitação para lidar com o indivíduo e sua religiosidade, são desafios que a clínica enfrenta. E, mesmo fora da clínica, toda a discussão acerca da psicologia laica gira em torno da proteção e cuidado da pessoa atendida. Não é um problema com a religião, ou perseguição religiosa como outros tem jogado na Midia.
O terceiro ponto que eu gostaria de destacar é a formação. A formação é sempre comentada, mas, nunca é demais falar da formação. Em primeiro lugar, a formação é um processo que se inicia, nunca se conclui. Pois, a formação implica numa atitude frente a si mesmo, por isso a necessidade da análise pessoal, implica numa atitude frente ao paciente, por isso a necessidade de supervisão, e implica numa atitude frente a vida, por isso implica numa abertura a mudança, e ao desenvolvimento pessoal. Esse desenvolvimento passa tanto pelos estudos quanto pelas ações, pelas experiências que vivemos. Jung dizia que “Muito mais forte do que suas frágeis palavras é a coisa que você é. O paciente está impregnado pelo que você é – pelo seu ser real – e presta pouca atenção ao que você diz”. (Jung apud HULL, McGUIRE, 1984, p. 332). E, ainda dizia que a “vida deve ser conquistada sempre e de novo”. O nosso “ser clínico” fala de fato de quem somos, por isso, a formação deve ser um compromisso pessoal. Digo isso, pois, vemos com frequência pessoas acreditarem que um “curso de formação” ou uma “especialização” vai torna-lo um excelente profissional. Nenhum curso pode garantir isso. Pode ter um refinamento teórico e técnico, mas, não significa que você vai ser um excelente terapeuta.
Certa vez, numa entrevista, perguntaram pro analista junguiano Léon Bonaventure “o que é ser um analista junguiano?” ele respondeu que “Acreditei, durante certo tempo, que era a formação, os diplomas, o fato de “ser membro de uma sociedade”. Hoje posso dizer categoricamente que isto nada tem a ver com a identidade de ser analista junguiano. Ser analista junguiano é ter um sentido aguçado da individuação, da Alma, do símbolo, da imagem. É ter coragem de viver a individuação. (PORCHAT et BARROS, 2006, p.100-1).
Individuação em sua forma mais superficial é o “tornar-se quem se é”. Através de um redimensionamento das relações sociais, do suportar a própria história e contradições, de integrar a dinâmica psíquica, através da relação com este “Outro” psíquico. Num movimento de profunda sinceridade com nós mesmos e com o mundo. Esse processo se dá sempre nas relações. E, nas mudanças a vida nos propicia.
Jung escreve num texto de 1912 que quem quisesse conhecer a psique, deveria deixar o consultório e o gabinete de estudos e
e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis- e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos “meetings” socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no próprio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios.
Então, como verdadeiro conhecedor da alma humana, tomar-se-ia um médico apto para ajudar seus doentes (Jung, 2001 p. 112-3)
Como disse anteriormente, a formação é sobretudo uma atitude frente a si mesmo, frente a pessoa atendida e frente a vida. Assumir a responsabilidade pela própria formação é um desafio fundamental a quem deseja cuidar do sofrimento humano.
Concluindo, esses três pontos – podem nos ajudar a pensar os desafios que a clínica enfrenta em nosso cotidiano.
Referencias Bibliográficas
COLIATH , A.A.M. Escolha do Terapeuta Associada a Denominação Religiosa, 2008,98f. Dissertação de Mestrado –Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008.
GUGGENBHÜL-CRAIG, A., O Arquétipo do Inválido e os Limites da Cura. In Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, vol.1 , 1983.
McGUIRE, W.; HULL, R.F.C, C.G.JUNG: ENTREVISTAS E ENCONTROS, Cultrix: São Paulo, 1984.
JUNG, C. G. Psicologia do inconscientePetrópolis: Vozes, 6 ed. 1999.
JUNG, Civilização em Transição,Petrópolis: Vozes, 2000.
JUNG, C.G. Psicologia do Inconsciente, Vozes: Petrópolis, 2001
PORCHAT, Ieda (Org.) e BARROS, Paulo (Org.) – Ser terapeuta: depoimentos – São Paulo: Summus Editorial, 2006.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes