
Casos Limítrofes e Neurose: Trauma e Intersecções
A teoria junguiana do trauma desenvolvida por Donald Kalsched foi um marco importante para o pensamento junguiano. A partir dela, o campo junguiano começou a vislumbrar aspectos sombrios e destrutivos inerentes à dinâmica da psique que, antes, não eram contemplados pela visão tradicional.
Kalsched se insere na tradição psicodinâmica junguiana iniciada por Fordham. Este último, conciliou o pensamento junguiano com perspectivas acerca do desenvolvimento com alguns elementos da psicanálise inglesa de Klein, Winnicott e Bion. A partir da compreensão da escola desenvolvimentista , Kalsched desenvolveu o que podemos compreendemos como psicodinâmica junguiana do trauma e seu impacto na psique.
A contribuição de Kalsched me parece ser subestimada nos círculos junguianos brasileiros. Ela lança uma luz num campo escuro e desafiador para a clínica junguiana, que são os casos-limites, limítrofres ou borderline. Como já mencionado em textos anteriores ( Estados Limítrofes ou Borderline e a Psicologia Analítica; Pacientes Limítrofes : Sofrimento e Trauma; Desafios da Psicoterapia com Pacientes Limítrofes) Jung chamou esses quadros de “psicose latente”, e advertia sobre as dificuldades de lidar com esses pacientes. Sobre a psicose latente, Von Franz afirmou
Em alguns casos é necessária uma determinação cruel quando a pessoa tem uma psicose latente. Se uma área relativamente pequena da psique da pessoa é psicótica, e a personalidade consciente é eticamente forte, podemos tratá-la como se existisse uma neurose, tentando integrar a parte doente e autónoma da psique. Isso acarretará grandes crises mas também uma cura completa, a totalidade ou integração. Mas existem outro casos onde a área doente é grande e a personalidade consciente pequena e fraca; se alguém quiser juntar as duas, será a parte doente quem assimilará o restante da parte sã, e a psicose latente tornará a se manifestar. (Franz, 1985,p.299)
Nesse texto, Von Franz indica a percepção da psicose latente como um espectro – que pode se assemelhar tanto às neuroses quanto às psicoses. Em outro texto, Von Franz aponta as características comuns em pacientes limítrofres, como a limitação da capacidade simbólica, da fragilidade do ego, a relação com processo de somatização.
Uma das mais destrutivas sindromes num intervalo psicótico ocorre quando as pessoas são sobrepujadas por experiências emocionais ou alucinatórias e não podem expressá-las. Logo que elas se sentem capazes de contar essas experiências a alguém, já não são completamente psicóticas; a primeira fase terminou. Se elas podem dizer alguma coisa a respeito disso, e podem descrevê-la ainda que de um modo hesitante ou simbolicamente, se são capazes de desabafar de alguma forma, já não estão mais perdidas e o processo de cura já está em curso.
O pior é quando a coisa é tão esmagadora que as pessoas ficam simplesmente pálidas, afundam na cama e tornam-se catatônicas. Sabemos que elas estão passando pelas mais tremendas experiências interiores mas, exteriormente, jazem na cama como um pedaço de madeira e recusam alimento. Quando se reanimam começam a gaguejar e a falar do que viram, isso já é uma melhora, pois encontraram então um modo de expressão. (Von Franz, 1991, 167)
A noção de psicose latente é um termo vago, impreciso e não corresponde com a organização limítrofe. Apenas descreve a desorganização da personalidade nos momentos de surto, que seriam melhor descritas como o uso defesas psicóticas, que distorcem a realidade e impedem os vínculos e a possibilidade de individuação.
Nos dias de Jung, havia pouca possibilidade terapêutica para pacientes limítrofes, até porque havia uma compreensão que os colocava próximos à psicose. Jung, por sua vez, possuía uma atitude diametralmente oposta a Freud no que tange a classificação e relação com o adoecimento psíquico, e expressou sua diferença com as palavras “Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde”(Jung, 1989, p.325), indicando que a doença não era o objeto de seu estudo nem de sua prática, mas o indivíduo.
Dessa forma, a imprecisão na psicopatologia, seja em relação psicose latente ou mesmo em relação a conceituação de neurose, era um posicionamento consciente, claro e de valorização do potencial do indivíduo que estava para além das classificações. De fato, esses valores são basilares para a psicologia junguiana e não excluem uma compreensão psicodinâmica do adoecimento psíquico, visto que cada vez mais pacientes com os mais diversos tipos de sofrimento psíquico chegam ao consultório.
Sobre essa imprecisão, Jung afirmou que
Eu mesmo desisti há muito tempo de construir uma teoria coerente da neurose; tudo o que aceito são uns poucos pontos de vista extremamente genéricos, tais como: dissociação, conflito, complexo, regressão, queda do nível mental, por serem estes os fenômenos encontrados usualmente em todas as neuroses. Toda a neurose é, pois, caracterizada por dissociação e conflito, contém complexos e apresenta fenômenos de repressão ou de queda do nível mental (JUNG, 2006, p. 119)
É importante notar que os elementos essenciais de Jung acerca da neurose também embasam da teoria do trauma que, como apontamos, é uma compreensão fundamental para percebermos os quadros limítrofes. Kalsched, por sua vez, aproxima a sua compreensão de trauma da neurose quando questionado sobre o sistema arquetípico de autocuidado, na entrevista com Daniele Sieff,
Daniela: Esse sistema de defesa é limitado às pessoas que sofreram trauma? É possível que alguém não desenvolva esse sis-tema?
Don: Não, eu mesmo inclusive! Na noite anterior à minha última palestra, fiquei acordado ouvindo uma história de ninar do meu protetor/opressor, dizendo que não havia nenhuma поvidade no conteúdo do meu texto e que meu discurso estava tão desorganizado que ninguém seria capaz de acompanha-lo. Isso é uma ação mais amena do mesmo sistema e acredito que ele seja universal. Nem todos sofrem de um trauma forte, mas todos têm algum tipo de insegurança ou mágoa. Todos crescem em uma casa, ou em uma sociedade, onde apenas partes da individualidade têm permissão para florescer, enquanto outras, julgadas inaceitáveis, ficam trancadas em um recesso oculto do ser. Poucas pessoas conseguem chegar à metade de suas vidas e dizer que passaram esse tempo em um ambiente onde foram vistas integralmente, espelhadas aprovadas e que tiveram a permissão de viver plenamente. Assim, concluímos que todos têm algum tipo de sistema protetor/opressor que os psicanalistas denominam “superego sádico”. Se não houver trauma durante a infância, o sistema não será tão extremo, primitivo ou rígido, mas ainda limitará o potencial e impedirá a vida plena. (SIEFF, 2019, p.47-8)
Na afirmação de Kalsched, podemos notar uma profunda intersecção entre os fatores que causam a neurose e os quadros limítrofes. Desta forma, os mesmos fatores que desenvolveriam ou desencadeariam a dissociação dos “complexos negativos”, padrões disfuncionais relacionamento e defesas nas neuroses gerariam a profunda divisão da personalidade nos casos limites.
Qual seria o fiel da balança? Qual seria o balizador para o desenvolvimento de um quadro neurótico ou de um quadro de uma personalidade cindida ou limítrofe? A estrutura e organização do ego. Devemos lembrar que o trauma é uma experiência insuportável que extrapola a capacidade do ego, as defesas psíquicas atuam para equilibrar e manter o ego seguro e funcional.
Assim, situações traumáticas como abandono, abuso ambivalência, negligência, quebra de confiança, ambiente hostil dentre outros; em que o ego infantil é incapaz de lidar podem ser compensadas pelas defesas arquetípicas que neutralizavam o impacto devastador da vivência, dissociando a sensação, percepção, afetos e o conhecimento a vivência, preservando-o. No caso de haver relações (irmãos, professores, escola, amigos ou familiares) que sustente algum vínculos afetivos com a realidade exterior, as defesas atuaram mantendo as experiências na sombra, como integradas aos complexos e mantidos dissociadas, afastadas do ego.
Nesses casos, apesar da experiência traumática, o ego se mantém funcional, mantendo vínculos, sendo capaz de vivenciar e aprofundar relações afetivas, mesmo com limitações. Pois, apesar da dor, ou de relações disfuncionais, o campo relacional pode ser sustentado, de modo, que as defesas do ego restauradas possibilitaram o desenvolvimento do individuo, ainda com limitações. Esse é um processo de desenvolvimento neurótico.
Em outras situações, das vivências traumáticas, seja intensidade, frequência ou imaturidade do ego, mobilizam as defesas arquetípicas de tal forma que o ego infantil é atravessado pelas defesas. Podendo se identificar com o agressor (se “reconhecendo má”, como sendo causa do próprio sofrimento, e devendo ser “boa” para ser amada), regredindo um modo organização primitiva impessoal (esquizoparanóide), sendo envolvidas por fantasias que “atribuem um sentido” ao sofrimento enquanto mantém afastadas das relações de intimidade com as pessoas e com o próprio corpo, desistindo de oportunidades(autossabotagem) e fazendo ataques ao corpo (abuso de substâncias, autolesão, dentre outros).
Nesse cenário, onde a repetição dessas vivências interiores mantém o ego cindido, uma parte se identifica com aspectos da persona, tornando-se responsivo as exigências sociais e amadurece de forma, outra parte permanece imatura, preso no labirinto do sistema arquetípico autocuidado, assim o ego sempre fragilizado e, assim, sempre dependente das defesas arquetípicas se torna incapaz suportar as exigências internas e externas que envolvem o processo de individuação. Entrando, assim, em ciclos dissociativos.
Os casos-limítrofes variam como um espectro, alguns se passam como a neurose outros notamos aspectos psicóticos na transferência, na percepção delirante, no rompimento de vínculos, que hoje não são percebidos propriamente como psicose, mas como “transtorno de personalidade”.
Para fazermos a distinção entre a caso limítrofe e o neurótico precisamos em observar a capacidade do ego em suportar e enfrentar os tensionamentos psíquicos, quais os recursos defensivos são utilizados – defesas primitivas ou defesas egóicas, capacidade de conectar com afetos, de estabelecer e manter vínculos, na capacidade de elaborar simbolicamente.
A vivência traumática nos pacientes neuróticos deixou cicatrizes, nos pacientes limítrofes sequelas. Por isso, quando um paciente neurótico traz no seu sintoma uma dificuldade que tem relação com seu trauma relacional, ele também traz recursos egóicos e relacionais para elaborar e integrar o complexo ou fazer as escolhas necessárias. Já o paciente limítrofe não possui tantos recursos, por isso precisamos muitos vezes, simbolizar com ele, estabelecer pontes nos frequentes momentos de dissociação, atuação e manejar as expectativas e a transferência que oscilar assumindo um aspecto psicótico.
Em todo caso, a percepção do ego, da capacidade sua criativa, e de suas realizações após a vivência traumática é um norteador para entendermos qual a psicodinâmica estamos lidando.
Referências Bibliográficas
FRANZ, M-L. v, A sombra e o mal nos contos de fadas, Ed. Paulinas :São Paulo, 1985.
JUNG, C.G. O Desenvolvimento da Personalidade, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2006.
JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.
SIEFF, D. F. Compreensão e Cura do Trauma Emocional, São Paulo: Paulus, 2019.