Arte e Psicoterapia: uma quase apologia[1]

 

(25 de março de 2010)

O uso da arte como instrumento terapêutico já era difundido desde a Antiguidade. Já era conhecida e documentada pelos gregos desde o século V a.C. Na tradição judaico-cristã o uso da arte como instrumento terapêutico é relatado na Bíblia[2], aproximadamente no século X a.C. Contudo, a arte como instrumento de ordenação da realidade já era utilizado desde a pré-história, como podemos observar nas pinturas rupestres. O uso contemporâneo da arte como instrumento terapêutico começou a ser sistematizado a partir dos anos de 1940. Desde então técnicas inspiradas nas expressões artísticas vem ganhando cada vez mais espaço entre os psicólogos.

A arte é um fenômeno humano transdisciplinar, que envolve os mais diversos campos do saber. Na psicologia essa transdisciplinaridade é percebida pelo uso da arte por diferentes abordagens psicoterápicas. Como a psicologia comportamental psicanálise, psicologia transpessoal, psicoterapia corporal, psicologia analítica, gestalt-terapia dentre outras.

Aqui utilizaremos o enfoque da psicologia analítica junguiana para pensarmos o uso desse fenômeno. Jung foi um dos pioneiros da psicologia contemporânea a utilizar o potencial da arte como instrumento da prática psicoterápica, no ensaio “A Função Transcendente”[3] de 1916,  Jung já sugeria que seus pacientes pintassem as imagens sejam de sonhos ou quaisquer que lhes ocorressem.

A arte, arquétipos e Símbolos

A arte é a grande testemunha da história humana.  A capacidade de interação e transformação da realidade foi documentada pela expressão artística. E, talvez, podemos dizer que a arte foi o veiculo pelo qual o homem pode se tornar homem.  O homem e a arte são elementos indissociáveis.

A consciência é estruturada simbolicamente, isto é, pela união de elementos que são próprios do homem e elementos que são próprios do meio.  A capacidade humana de produzir símbolos propiciou uma relação diferenciada com o meio, onde um gesto deixaria de ser apenas um movimento corporal e se tornaria algo a mais, seria um movimento corporal pleno de significado. A emergência da consciência simbólica do homem foi documentada por meio das pinturas rupestres.

As pinturas rupestres juntamente com a produção de artefatos (pontas de lanças, machados, esculturas) são os mais antigos documentos/evidencias de ordenação psíquica. Esses documentos históricos nos narram o processo de como o homem foi interferindo no meio através do desenvolvimento de instrumentos e técnicas e, assim, de como foi descobrindo, a si mesmo e ao outro, e se diferenciando dos demais animais.  As pinturas como a de Lascaux ou esculturas como a “vênus de Willendorf” nos mostram que o homem há cerca de 30 mil anos, já olhava para uma pedra ou para as paredes e via mais do que elas eram.  A arte é alma humana em movimento na história.

Para pensar a arte e sua relação com a psicologia, devemos ser cuidadosos para não cairmos no reducionismo psicológico. Jung (1991) compreendia que para falar da arte ou da obra de arte deveríamos nos abster de uma categorização psicológica da arte/obra de arte. Para a psicologia deveria se “contentar” com o processo criativo que se manifesta no indivíduo.

O processo criativo não é “algo” que pertença a um individuo. Mas que atravessa o indivíduo. Talvez, nesse momento,  fosse mais correto chamar de impulso e não de “processo” criativo. O impulso criativo atravessa o indivíduo, assim como atravessa a cultura e os séculos.

Jung compreendeu que esse impulso criativo como sendo próprio do psiquismo humano.  Ao impulso de criação que se manifestaria de forma típica organizando o psiquismo e possibilitando o desenvolvimento do mesmo Jung chamou de arquétipos.

Os arquétipos são os processos de organização simbólica humana que a consciência humana apreende como imagens plenas e prenhes de sentido.  Os arquétipos são apreendidos pela consciência por meio dos símbolos, ou seja, pelas formas psíquicas que possuem uma representação consciente, mas cujo significa do não é claramente definido.

Quando são utilizadas “técnicas artísticas” como pintura, modelagem, composição, desenho, colagem, literatura eles propiciam o contato com o ímpeto criativo que, através do fazer artístico, propicia a produção de símbolos. Revitalizando e reorganizando a consciência daquele indivíduo, isto é, o modo como ele experimenta o mundo interno e externo.

Segundo Jung, “o processo criativo consiste (até aonde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acaba” (JUNG, 1991, p.71).  Cabe aqui pensarmos as relações entre o processo criativo e impulso criativo. Para compreender melhor a diferença podemos fazer a seguinte metáfora: o impulso criativo é como um rio subterrâneo que corre nas profundezas. O processo criativo são os meios de captar e aproveitar as águas desse rio.

Assim, nos artistas esse rio está muito próximo superfície e, muitas vezes, corre livremente na superfície tornando extremamente férteis suas margens – embora o risco de “inundações” sejam maiores. Em pessoas saudáveis esse rio subterrâneo alimenta superfície como pequenos riachos.  Em pessoas neuróticas esse rio não chega à superfície. O neurótico tem que buscar outros meios para lidar com esse empobrecimento psíquico. Nesse contexto o processo artístico entra como a possibilidade de “criar poços” e através destes poços fertilizar a superfície da consciência.  Esses poços são os símbolos.  O símbolo “aglutina a energia psíquica e redistribui de maneira a transformar os processos inconscientes em conscientes e vice-versa(…)” (BYINGTON, 1983, p. 10).

Não podemos perder de vista que ao falarmos da arte, falamos de é um fenômeno natural, inerente ao ser humano. Todas as culturas produzem formas artísticas de expressão. A arte, assim como os símbolos, não é produzida de modo puramente consciente (ou artificial).   Para pensarmos a relação entre arte e psicoterapia devemos pensar um pouco sobre a psicoterapia.

Pensando a Psicoterapia

A psicoterapia ou a psicologia clínica é um fenômeno contemporâneo, nascendo no final do século XIX. Contudo suas raízes se perdem na história quando a relacionamos com as práticas mágico-religiosas de cura que ao longo da história vem se ocupando dos fenômenos da alma.

A dificuldade que podemos encontrar na relação entre as práticas mágico-religiosas de cura e os métodos contemporâneos de psicoterapia está o processo histórico de formação do saber científico. A ciência moderna se desenvolveu resistindo e se opondo ao dogmatismo religioso, influenciada pelo iluminismo e pelo positivismo compreendendo o mundo por suas próprias categorias, desvalorizando ou mesmo negando o saber que antes era relacionado à religião ou à “sabedoria mítica popular”.  Esse processo levou, inicialmente, a uma visão organicista das doenças da alma, isto é, as doenças da alma, que também eram vistas como ”aflições divinas”, foram reduzidas a um epifenômeno de um organismo doente. O empirismo e materialismo se instauraram como modelo médico, reduzindo, pela visão organicista, a uma disfunção fisiológica. É nesse cenário que, como dizia Jung, os deuses tornaram-se doenças.

Quando nos referimos a passagem de uma divindade a uma doença,  nos referimos a um processo de perda de significado simbólico. Vejamos, quando numa sociedade a doença é fruto de um castigo divino ou de uma intervenção divina, ela implica o indivíduo no processo obter o favor ou o perdão da divindade, seja por meio de reconhecimento de erros, mudança de atitude com outras pessoas (familiares, p. ex.), ou mesmo mudança em sua alimentação. Assim, nas culturas onde a doença é atravessada pelo sagrado, há um imperativo de mudança ou de tratamento que é próprio dos mitos daquela cultura ou religião.  A doença, quando manifesta, tem sempre o caráter de remeter o indivíduo e/ou indivíduos próximos ao sistema mítico ordenador daquele grupo, de forma a obter o favor divino pela cura.  A mudança de atitude é necessária para que o deus infligiu a doença se compadeça e a retire.

A mitologia (ou religião) narra eventos que aconteceram em um tempo sagrado, isto é, num tempo contínuo que é desde sempre e se renova constantemente. Os mitos são “modelos exemplares” que possibilitam a organização da consciência, pessoal e  coletiva, frente a um acontecimento potencialmente desestruturante, fornecendo a mesma orientação e sustentação.

Em outras palavras, os mitos são estruturas coletivas que fornecem uma orientação ao homem, situando-o no seu espaço e tempo, e dando um sentido a sua existência de forma a orientá-lo em suas ações para o futuro. O sagrado é justamente a possibilidade que se impõe ao comum ou natural, isto é, ao profano.  Um depende do outro.  As doenças, sejam elas do corpo ou da alma, eram/são vistas no mundo religioso como provenientes do mundo sagrado das divindades, isto é, as doenças seriam causadas pelo divino e pelo divino seriam curadas. Como exemplo, no mundo grego,

(…) quando alguém se encontrava doente a solução era recorrer a um “médico divino e não a um médico humano”(…). A razão para tal procedimento era que o homem da era clássica via a doença como o resultado de uma ação divina, que só poderia obter a cura através de outra ação divina. Nas clínicas da antiguidade praticava-se, pois, uma forma definida de homeopatia, em que um remédio divino vencia uma doença divina. Conferir tal dignidade à doença acarreta a vantagem inestimável de conferir-lhe também um caráter curativo. A divina afflictio contém, dessa maneira, seu próprio diagnóstico, terapia e prognóstico, desde que, é claro, a atitude correta a ela tenha sido adotada. O que possibilitava a atitude adequada era o culto, que consistia simplesmente a cargo do médico divino toda a arte da cura. Ele próprio era a doença e o remédio também.(GROESBECK, 1983, p. 74)

Numa perspectiva arquetípica a doença e a cura são faces da mesma moeda.  A “doença divina”, isto é, a doença com um sentido ou significado coletivo possibilita o movimento interno de cura. Pensando na prática da psicoterapia contemporânea nos deparamos novamente com a questão do sentido.  Quando Freud, acompanhando Breuer, compreendeu que os sintomas histéricos possuíam um sentido, um significado.  Freud penetrou no âmbito simbólico do sintoma ou das formações do inconsciente, isto é, compreendeu que havia muito mais no sintoma do que era manifesto.

A psicoterapia, na perspectiva junguiana, tem como objetivo o resgate do sentido da doença ou desse sintoma, para que através de uma releitura o individuo possa mudar sua atitude consciente em relação a totalidade psíquica que o envolve. Se fossemos falar de um “processo de cura” este seria um processo onde o indivíduo inicia um relacionamento profundo consigo mesmo, a fim de encontrar em si o agente de cura interior.

Guggenbühl-Craig sugere que existe um arquétipo ”médico/paciente” que é ativado todas as vezes que uma pessoa fica doente. O doente procura um médico ou doutor externo, mas o fator intra-psíquico, ou “fator curador”, ou ainda o “médico interior” é também mobilizado. Mesmo o médico externo sendo muito competente, as feridas e doenças não poderão ser curadas se não houver a ação do “médico interior”.(…) (Basta lembrar o grande número de pessoas que ainda morre de pneumonia, muito embora a pneumonia seja uma doença curável.) É freqüente ouvirmos explicações do tipo: “sua resistência interna cedeu” ou “ ele não estava querendo melhorar”. De um ponto de vista arquetípico, era o médico interior que não estava funcionando. (GROESBECK, 1983 p. 77)

Podemos pensar que a psicoterapia é a busca pelo “fator curador” inerente ao indivíduo. Contudo, este efeito do “fator curador” ou desse “médico interior” depende da disposição da consciência na relação com o inconsciente. E, talvez seja esta a grande questão da psicoterapia: possibilitar que a consciência tenha um contato transformador com o do pólo curador deste arquétipo constelado no inconsciente. Podemos compreender a constelação deste arquétipo como o movimento de reorganização inconsciente para suprir as deficiências da relação com a consciência, podendo ser acompanhado pela constelação de outros arquétipos.

Outro aspecto que Guggenbühl-Craig chama atenção é a possibilidade da cisão do arquétipo.  Segundo o mesmo, essa cisão se daria quando

(…) o paciente, por exemplo, talvez projete o seu terapeuta interior sobre o médico que o trata e este poderá projetar suas próprias feridas no paciente. Essa projeção de um pólo do arquétipo sobre o mundo exterior poderá proporcionar uma satisfação momentânea. Mas, a longo prazo, indica que o processo psíquico está bloqueado.” (GUGGENBÜHL-CRAIG,1978, p.99)

Com a projeção do pólo curativo deste arquétipo no terapeuta, o pólo da doença, com o cliente, este, ao olhar para si, vê apenas impossibilidade.  No contexto analítico, devemos compreender essa projeção como transferência e/ou contra-transferência. Guggenbühl-Craig aponta para a deficiência da relação terapêutica onde o terapeuta favorece polarização o arquétipo saúde-doença. A polarização em si é um fenômeno natural, que leva o cliente a buscar auxílio fora de si mesmo. Contudo, se essa polarização encontra sustento e reforço, pode se tornar uma cisão, diminuindo ainda mais a relação entre a consciência e o inconsciente. Por outro lado, essa contratransferência também fala da incapacidade desse terapeuta em lidar com sua sombra ou suas feridas.

Como dito, a projeção ou transferência desse pólo arquetípico é o que possibilita o inicio de um tratamento. Contudo, o que vai propiciar o desenvolvimento é a capacidade do terapeuta em receber essa projeção, sem se seduzir por ela, e no momento certo devolvê-la ao cliente como a possibilidade dele se organizar.

Mas, como pensar a relação de técnicas artísticas com a psicoterapia de base analítica? E a transferência? Antes de pensarmos em respostas para esse tipo de pergunta, devemos refletir um pouco sobre o paradigma da psicologia clínica.

Repensando o Paradigma

Na história da psicologia aprendemos que a psicologia clinica contemporânea emerge da medicina, a partir dos desdobramentos de trabalhos de pioneiros como Freud, Janet e Jung. Apesar de ter se afastado ao longo dos anos do modelo médico, psicologia clínica guarda alguma identidade com o modelo médico de onde emergiu. Relação que podemos perceber até pelo uso do próprio termo “clinica” vem do grego “kliné” que significa cama ou leito.

Psicologia clínica, em sentido próprio, se refere a uma área da psicologia ou uma área de atuação do psicólogo, na qual exerce a psicoterapia. Entretanto, esses termos nos trazem elementos importantes para pensarmos a questão de paradigma subjaz a termos/conceitos. Nesse processo, é importante buscarmos a imagem que se esconde por trás das palavras ou que deram sentido a essas palavras as quais usamos de forma quase “descuidada”.

Falamos que a Clinica, ou kliné, é a cama ou leito. E, psicologia, em seus termos que formam, seria psyché, isto é, “alma, sopro ou principio vital” e logos “estudo ou discurso”.  Se pudéssemos jogar com as palavras teríamos psicologia clinica como o “estudo ou discurso da alma no leito”. Que nos leva a pensar uma “alma” doente. E, assim, falamos de um modelo médico. O termo Medicina que usamos, vem o termo homônimo latino, cujo significado é remédio, também é associado à arte de ministrar o remédio, que por derivação, a arte de curar.

Por outro lado, temos a psicoterapia, quase desdobramento necessário da prática clinica. Psicoterapia é um termo formado pelos termos gregos psyché + therapéia que em grego pode ser compreendido como servir, honrar, assistir, cuidar e tratar.  Nessa riqueza de significados, poderíamos pensar a psicoterapia um “servir a alma” ou “cuidar da alma” assim como o “tratar da alma”.

Falta pensarmos a arte vem do termo latino, Ars, que possui sentidos variados como profissão, trabalho, habilidade e num sentido mais amplo “o trabalho que o homem faz”.

Ao pensar nesses significados e nas imagens que nos advém, podemos olhar para o modelo médico e o modelo artístico na psicologia.  No modelo médico falamos de uma psicologia clínica ou um “estudo da alma no leito” de uma alma que carece de um “remédio”.  Por outro lado, falamos de um modelo artístico onde a psicoterapia ou “cuidar da alma” enquanto ela está no seu “fazer” na vida. Talvez a diferença fundamental entre modelo médico para o modelo artístico está na compreensão do estado da psique, em outras palavras é pensar se está ou não a psique no leito? Está ou não a psique doente e impossibilitada?

É necessária a compreensão de que a patologia, do grego de pathos que é sofrimento ou passagem, é um processo muitas vezes necessário e que serve a Saúde.  Heráclito, já afirmava que “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres”. A guerra, do grego pólemos (de onde temos polêmica), é o conflito ou a tensão necessária para a criação. A psicopatologia ou “discurso do sofrimento da alma”, uma forma de criação.

Pensar a mudança de paradigma que propomos é mudar o olhar sobre a psique.  Pois, caso contrário à inclusão das “artes” como práticas psicoterápicas pode se tornar mais um “medicamento”.  E a “técnica” se tornar mais um “procedimento”. Para pensarmos essa mudança modelo de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico seria necessária

a libertação dos fenômenos psíquicos da maldição do espírito analítico. Isso implica uma reflexão sobre o espírito analítico, a compreensão de sua preferência pela psicopatologia e, também do fato de a psicologia ter se tornado um imponente, embora sutil, sistema para distorcer a psique motivando a crença de que há algo “errado” com ela e, em conseqüência, para analisar sua imaginação através de categorias de diagnóstico. Fazer a psique entrar na vida não significa afasta-la de sua enfermidade, mas sim da concepção doentia de si mesma, de sua pretensa necessidade de cura, conhecimento e amor profissional. (HILLMAN, 1984, p. 14)

Uma “mudança de paradigma” não exclui a necessidade de medicamentos, de diagnósticos, mas o ponto central é “servir a alma” em seu processo de transformação ou sofrimento. O modelo médico ou como Hillman denominou “espírito analítico” compreende a psique como um objeto do analista ou do terapeuta, o modelo artístico ou simbólico pressupõe a alma como agente, o analista ou terapeuta ouve a alma e lhe serve os elementos necessários para que ela se crie e recrie. Quando falo de de “ouvir a alma”, não me refiro ao “ego”, mas ao Self, isto é, a totalidade psíquica.  O que implica em anunciar ou denunciar ao ego sua responsabilidade no processo de sofrimento psíquico. É perceber que, antes de tudo, a dor também é um processo de criação.

Compreendendo a dor ou o adoecer como um processo de criação, nos aproximamos novamente das “artes” que são formas da alma se expressar e se fazer na vida.  Toda dor ou doença possui um significado, uma história – assim, nem toda dor deve ou pode ser “curada”.

Sob a égide de Hefesto

A psicoterapia ou analise se mantém ou se torna efetiva por constelar uma dinâmica arquetípica que pode ser apreendida pelo caráter mítico. Dessa forma, devemos pensar qual dinâmica arquetípica o uso da arte na terapia poderia constelar ou, em outras palavras, qual o mito revivido nessa modalidade analítica?

No mundo grego, os deuses emblemáticos do processo de criação são Apolo e Hefesto.  Apolo é o deus das artes, da poesia da música, nele o processo criativo emana naturalmente. Apolo ou Febo Apolo (brilhante Apolo) é uma divindade solar, uma divindade onde a criação brilha e encanta. Em Apolo a arte é se exprime em sua potencia última e saudável.

Hefesto, por outro lado, é o deus “imperfeito”, aleijado.  É uma divindade impar no panteão grego, é filho legitimo dos deuses olímpicos, mas sua deficiência o afastou do Olímpio, mas por sua arte ele pode se religar a casa olímpica. Existem duas versões para sua deficiência física. Na primeira, durante uma discussão entre Hera e Zeus, Hefesto “ousou tomar o partido da mãe. Zeus enfurecido, agarrou-o por um dos pés e o lançou para fora do Olimpo. Hefesto rolou pelo espaço o dia todo e somente no pôr-do-sol caiu na ilha de Lemnos(…) Com o tombo o deus ficou aleijado e maquitolava de ambas as pernas”(BRANDÃO, 1991, p.490)

Em outra versão Hesfesto foi gerado apenas pela mãe, Hera, revoltado pelo nascimento de Atena, gerada apenas por Zeus. Hesfesto teria nascido deformado e coxo. Hera,

humilhada com a fealdade  e deformação do filho, Hera o lançou do alto do Olimpo. Após rolar pelo vazio durante um dia inteiro, o infeliz caiu no mar, onde foi recolhido por Tétis e Eurínome, que o “guardaram” por nove anos numa gruta submarina, o que mostra com clareza o longo período iniciático do deus coxo. Foi nessa gruta que Hefesto fez sua longa aprendizagem: trabalhava o ferro, o bronze o os metais preciosos, tornando-se “o mais engenhoso de todos os filhos do céu”. (BRANDÃO, ibid).

Hefesto, mais que Apolo, é a divindade que traz a arte como possibilidade de superação e mudança de atitude. Hefesto o deus deformado passou nove anos “esquecido” pelos deuses, período no qual trabalhou a si mesmo, assim como trabalhava o metal. Seu trabalho criativo fez com que fosse levado novamente ao Olimpo, mas sua arte com os metais e com o fogo não o limitou a um artesão – sua arte foi apenas a abertura para novas possibilidades. Conta-se que Hefesto também lutou

bravamente contra o gigante Clício e o mata, golpeando-o com barras de ferro em brasa. Em Tróia,(…) quando o rio Escamandro ameaçou a submergir Aquiles, o deus coxo, por solicitação de Hera, avançou com suas chamas e seusopro ígneo sobre as águas do rio e o obrigou a retornar a seu leito. (BRANDÃO, ibid, p. 491)

O mito de Hefesto traz a imagem daquele que cria a si mesmo por meio da arte ou de sua arte. Neste mito temos na arte como a possibilidade de unir o ctônico e ao celeste.  A arte possibilitou que Hefesto assumisse quem ele realmente era, isto sua divindade, direito e dignidade para ir ao Olimpo, para onde foi levado [4]como um igual.

Podemos compreender a arte metalúrgica de Hefesto como uma função transcendente, que se sobrepôs a sua deficiência física, permitindo a união de opostos.

O mito de Hefesto é um mito de sofrimento, rejeição, raiva e, sobretudo, de superação. Apesar de todo o sofrimento, Hefesto que é jogado nas profundezas se ergue. Assim como seu nome diz, “o fogo nascido das águas celestiais”. Hefesto é o fogo que as águas não apagaram.

Podemos considerar Hefesto como o “deus tutelar” da arte a serviço da alma (psicoterapia) assim, a arte na psicoterapia não seria a arte dos artistas. Deveríamos distinguir a arte de Apolo e a arte de Hefesto. A primeira é a arte da expressão da alma na construção de si no mundo, um traço extrovertido, buscando a luz do sol, buscando os olhos que a contemplem, a arte de Apolo serve sobretudo ao coletivo. Já a segunda é a arte de reconstrução da alma no individuo, com um traço introvertido, ele se faz nas forjas do Etna, nas cavernas, escondida e distante dos olhos curiosos. Mas, quando se realiza é bela e digna de admiração por homens deuses.

Arte e Psicoterapia: uma quase apologia

Ao longo deste trabalho discutimos formas de pensar a arte e a psicoterapia.  O processo criativo é, sobretudo, um processo individual, seja na arte ou na psicoterapia o terapeuta é um assistente in lato sensu. Por um lado, testemunha o desvelar da alma daquele indivíduo e por outro lado, ele serve ao processo oferecendo uma possibilidade ou a técnica, como uma resposta a uma solicitação do inconsciente cliente. A contratransferência, a resposta do inconsciente do terapeuta ao cliente, seria um elemento importante para pensar o Kairós da técnica.

O uso da arte no prisma analítico é uma possibilidade de superação de uma possível cisão do arquétipo de saúde-doença. No processo de criação a interação com o material empregado possibilita uma maior relação do cliente consigo mesmo, favorecendo ao desenvolvimento da autonomia em relação ao terapeuta, que passa efetivamente a assistente, in lato sensu, da transformação do cliente. Pois, o processo do fazer envolve o indivíduo como um todo.  Isso quer dizer que em sua dinâmica o indivíduo é a “ativado” no âmbito consciente (ego) e no âmbito inconsciente pessoal (dos complexos, sua história pessoal), e no âmbito arquetípico, que é gera uma dinâmica criativa diferenciada que amplia a possibilidade de compreensão da realidade – por meio dos símbolos. Nessa tripla “ativação” surge a possibilidade de mudança de transformação.

O elemento criativo ou arquetípico é fundamental para o desenvolvimento da personalidade, não precisa ser “explorado” pelas palavras como uma “tradução da obra” ou uma interpretação do que foi feito. O fazer criativo possibilita um novo olhar do indivíduo em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca. As palavras tendem a limitar ou aprisionar o símbolo a um conjunto restrito de significados.

A evocação dos arquétipos e a correlativa liberação dos desenvolvimentos psíquicos latentes, não são processos apenas intrapsíquicos; eles ocorrem num campo arquetípico que abrange o dentro e fora, e que inclui sempre, e pressupõe, um estímulo exterior – um fator proveniente do mundo (NEUMANN, 1991, p. 68).

Dessa forma, é necessário que o cliente seja entre em contato com algo que possa evocar essa potencia criativa. Esse contato, pode ser por meio das técnicas expressivas, ou pelo método de “ampliação” de sonhos ou fantasias,  possibilitando o religar o individuo com seu potencial criativo-arquetípico.

A arte pode atuar como um catalisador importante no processo terapêutico.  Um receptáculo para as projeções, que possibilita o indivíduo um confronto especial com o inconsciente. Contudo, a arte não é a panacéia.  A técnica certa pode se tornar ineficiente em alguns casos. Jung usava o provérbio taoísta que exprime bem essa realidade “Se o homem correto(…) usar o meio errado, o meio errado atuará do modo correto.(…) No entanto, se o homem errado usar o meio correto, o meio correto atuará do modo errado”(JUNG et WILHELM, 1988, p132) No caso específico, a técnica é o dialogo, muitas vezes silencioso, entre o terapeuta e o cliente.

É necessária presença ativa (mesmo que silenciosa) do terapeuta, a aposta no potencial inconsciente de cura e desenvolvimento do cliente. Pois, se o terapeuta não confiar e não buscar o “terapeuta/médico interior do cliente” ficará ainda mais difícil para o cliente encontrá-lo. Essa atitude do terapeuta vai para além do campo das palavras ou das intervenções orais. Pois, segundo Jung,

Muito mais forte do que suas frágeis palavras é a coisa que você é. O paciente está impregnado pelo que você é – pelo seu ser real – e presta pouca atenção ao que você diz. (…) Cada passo em frente que o paciente dá pode ser uma nova etapa para o analista. Não se pode estar com alguém sem ser influenciado por essa personalidade, mas o mais provável é que se não se perceba isso; (HULL, McGUIRE, 1984, p. 332)

Assim, faço uma quase apologia da arte ou técnicas artísticas com a psicoterapia. Pois, “tudo depende, como Jung não cansava de repetir, da ‘equação pessoal’, e equação pessoal é o mito próprio de cada terapeuta” (HILLMAN, 1984,p. 23). A técnica ideal é aquela que simboliza o encontro do terapeuta com o cliente, de modo a constelar o potencial de cura necessário ao cliente.

Minha quase apologia se torna também uma quase crítica. Esta quase crítica repousa não na técnica, mas justamente, no terapeuta que usa da técnica. Digo isso pelo risco da técnica se tornar um escudo que separa o cliente do terapeuta, protegendo este ultimo do contato. Do contato com sua própria insegurança, do contato própria história, com seus conteúdos que são ativados pelo contato com o cliente.

O uso de técnicas para “determinados casos” pode valorizar a patologia em detrimento do sujeito. A técnica é um meio, não um fim. O conhecimento da técnica, a experiência com a mesma, não pode substituir o contato único com cada cliente.  Mas, esta quase crítica se torna apenas um ponto de reflexão.

Gombrich, em sua história da arte, dizia que “uma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas.” (GOMBRICH, 1988,p. 4) Dessa forma, pensaríamos que não existe doença, mas doentes. Nem “Psicoterapias”, mas “psicoterapeutas”. Jung dizia que “o importante já não é a neurose, mas quem tem a neurose. É pelo ser humano que devemos começar para poder fazer-lhe justiça” (JUNG, 1999, p.80).

Referencias bibliográficas

BYINGTON,C.A.B. O DESENVOLVIMENTO SIMBÓLICO DA PERSONALIDADE, in JUNGUIANA – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1983.

BÍBLIA. Português. BÍBLIA SAGRADA: Nova Versão Internacional. Tradução da Comissão de Tradução da Sociedade Bílbica Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000.

BRANDÃO. J. DICIONÁRIO MÍTICO-ETIMOLÓGICO, Vol. I, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.

GROESBECK, C.J. A IMAGEM ARQUETÍPICA DO MÉDICO FERIDO,in JUNGUIANA – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1983.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O ABUSO DO PODER NA PSICOTERAPIA e na medicina, serviço social e magistério, Ed. Achiamé, Rio de Janeiro, Rj, 1978.

GOMBRICH, E.H, A HISTÓRIA DA ARTE, Ed. Guanabara, 4.d. Rio de Janeiro, RJ, 1988.

HILLMAN, J. O MITO DA ANÁLISE. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984.

JUNG, C.G. A NATUREZA DA PSIQUE, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2000.

JUNG, C.G. A PRÁTICA DA PSICOTERAPIA, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1999.

JUNG, C.G. O ESPIRITO NA ARTE E NA CIÊNCIA, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.

JUNG, C.G. – WILHELM, R. – O SEGREDO DA FLOR DE OURO. Um livro de vida chinês, Petrópolis, Editora Vozes, 1988;

McGUIRE, W.; HULL, R.F.C, C.G.JUNG: ENTREVISTAS E ENCONTROS, Cultrix: São Paulo, 1984.

NEUMANN, E. A CRIANÇA, São Paulo: Cultrix Editora, 1991.


[1] Este artigo é uma adaptação do trabalho apresentado para a disciplina “Técnicas e Intervenções Terapêuticas”, ministrada pela prof. Dra. Kathy A. Marcondes, no curso de pós-graduação/especialização latu sensu em “Psicologia Clínica e da Família”, na Faculdade Saberes em 2007.

[2] Segundo no Livro de I Samuel, 16:23, “Sempre o espírito mandado por Deus se apoderava de Saul, Davi apanhava sua harpa e tocava. Então Saul sentia alívio e melhorava, e o espírito maligno o deixava.” (BIBLIA, p.223, 2000)

[3] Cf. JUNG, 2000

[4] Hefesto foi levado ao Olímpo, como reconhecimento de suas habilidades. “Em sua longa carreira de ferreiro e ourives divino, Hefesto multiplicou suas criações, forjando e confeccionando os mais preciosos, belos e “surpreendentes” objetos de artes que já se viram. Para vingar-se da mãe, fabricou e enviou-lhe um presente magnífico: um trono de ouro, delicado e artisticamente cinzelado. Ao recebê-lo, Hera ficou estupefacta: jamais vira coisa tão rica e tão bela, mas, ao sentar-se nele, ficou presa, sem que nenhum dos deuses pudessem liberta-la, por que só o ourives divino conhecia o segredo de atar e desatar, (…) Foi necessário enviar Dioníso, para levá-lo de volta para o Olimpo. O deus o êxtase e do entusiasmo embriagou Hefesto e, assim, foi possível guia-lo, montado num burro, à mansão divina.” (BRANDÃO, 1991, p.490)

 

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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