Em agosto de 2022, ofereci a primeira turma do curso “fundamentos de psicossomática junguiana”, onde integrei aspectos gerais da psicossomática, teoria junguiana e medicina chinesa – compreendendo que há uma certa lacuna na compreensão geral da teoria junguiana na compreensão do corpo, ou mais propriamente do que Jung chamou de “corpo vivo”, uma expressão ou conceito se só tornou clara a partir de minha prática clínica e estudos e prática em medicina chinesa.
Nessa ocasião(ago/22) estou concluindo em minha especilização em Acupuntura Clássica Chinesa que exige 300 horas prática de ambulatório, me permitiu compreender e refletir a minha prática clínica psicológica direcionamento meu olhar e escuta para os processos que Jung denominou de “corpo vivo”, que é nosso ponto de partida para pensar a psicossomática junguiana.
O Corpo Vivo
Na literatura junguiana e obras coligidas de Jung temos poucas referências o corpo e sua relação no processo analítico/psicoterapeutico, assim como poucas menções ao corpo vivo. Uma das afirmações mais efetivas acerca do corpo vivo está nos Seminarios sobre o Zarathustra de Nietzsche, onde Jung afirma
Mas o corpo é, naturalmente, também uma concretização, ou uma função, daquela coisa desconhecida que produz a psique tanto quanto o corpo; a diferença que fazemos entre a psique e o corpo é artificial. Isso é feito para uma melhor compreensão. Na realidade, não há nada além de um corpo vivo. Esse é o fato; e a psique é tanto um corpo vivo quanto o corpo é a psique viva: é exatamente a mesma coisa. (JUNG, Jung´s Seminar on Nietzsche´s Zaratura 1997, p113-4 – Tradução nossa)
Na concepção de Jung, o “corpo vivo” transcende a dissociação psique-corpo, de modo a superar a dicotomia cartesiana. O corpo vivo é uma expressão de uma visão integrativa. Que traz o Self que, com frequencia é percebido em seu aspecto transcendente, para seu aspecto imanente isto é, para o corpo. O corpo vivo, vivido é uma experiência imediata e transfomadora que os cujos simbolos emergem do/no corpo. Jung afirmou que
Os símbolos do si-mesmo surgem na profundeza do corpo e expressam a sua materialidade tanto quanto a estrutura da consciência discriminadora. O símbolo é o corpo vivo, corpus et anima; por isso, a “criança” é uma fórmula tão adequada para o símbolo. A singularidade da psique é uma grandeza em vias de realização, nunca de um modo total, mas aproximativo, a qual é ao mesmo tempo o fundamento imprescindível de toda consciência. As “camadas” mais profundas da psique vão perdendo com a escuridão e fundura crescentes a singularidade individual. Quanto mais “baixas”, isto é, com a aproximação dos sistemas funcionais autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e ao mesmo tempo se extinguirem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias químicas. O carbono do corpo é simplesmente carbono. Em seu nível “mais baixo” a psique é pois simplesmente “mundo”. Neste sentido dou toda razão a KERÉNYI quando este diz que no símbolo fala o próprio mundo. Quanto mais arcaico e “mais profundo”, isto é, mais fisiológico o símbolo, tanto mais ele é coletivo e universal, tanto “mais material”.Quanto mais abstrato, diferenciado e específico, tanto mais se aproxima da natureza da unicidade e singularidade consciente e tanto mais se desfaz do seu caráter universal. (Jung, 2000, p. 173)
Jung compreendia que era necessário integrar o corpo, os processos somáticos às transformações ocorridas na psicoterapia. O corpo vivo é, em si mesmo, simbolo. É importante compreender o “corpo vivo” implica falar de símbolo como/no corpo é diferente de falar de “corpo simbólico”. Este ultimo visa o aspecto psíquico, que abstrai o corpo, a matéria, visando as representações psiquicas que tendem ao afastamento do corpo, valorizando as expressões e e amplificações percebidas via cultura – como na mitologia, religiões comparadas.
Compreender o corpo vivo signfica pensar os simbolos no corpo, inconsciente psicóide e o Self imanente.
Símbolos e a Energia Biopsiquica
É bem sabido que, para Jung, compreender os processos do inonsciente deveriamos estudar os mitos e contos de fadas que nos forneceriam referências simbólicas/arquetípicas expressas na cultura e história das religiões, para assim compreender os símbolos. Em seu método de amplificação Jung indica a importante de “circular” em torno do símbolo, compreendendo seus paralelos históricos pessoais, culturais e mitológicos para compreender a mensagem simbólica . O estudo da mitologia é de tal importância que, em seu encontro com Nise da Silveira, afirmou que sem o estudo de mitologia, ela não compreenderia as fantasias, delirios e produções de seus pacientes.
As narrativas dos mitos e contos de fadas nos oferecem uma cartografia da alma, possibilidando compreender os simbolos emergentes especialmente em sonhos, fantasias e imaginaçao ativa. Em alguns casos, o simbolismo mitico-religioso também é eficaz para compreensão e amplifcação dos processos psicossomáticos. Em muitos outros não é suficiente. A questão central é : existem mitologias do corpo? Existem sistemas simbólicos corporais? Sim. Existem. As medicinas tradicionais (como a chinesa, ayurveda, kampo, indigenas dentre outras) oferecem não só técnicas/praticas curativas mas uma compreensão arquetípica, simbólica e energética dos processos de adoecimento integrando o individuo e a natureza.
Infelizmente, até onde podemos ver, Jung não teve contato com as medicinas tradicionais. Sabemos em suas memórias que ele teve um contato com as práticas indianas do yoga – que ele utilizou em seu periodo de “confronto com o inconsciente”, para manter a integridade corpo-psique até conseguir compreender as imagens subjacentes as emoções. Jung possuia um conhecimento sobre a filosofia védica mas não relata qualquer contato com as praticas medicinais da medicina ayurveda. Do mesmo modo, Jung fala o taoísmo, em parceria com Richard Wilhelm escreveu um comentário ao Segredo da Flor de Ouro e a introdução à versão do I Ching, mas não temos qualquer indicativo que Jung teve contato aprofundado com a medicina chinesa.
As medicinas tradicionais trazem milênios de narrativas e cuidados sobre o corpo. Nos exemplos citados, a medicina chinesa e a indiana da ayurveda, falamos de cerca de 3 a 5 mil anos de experiência médica que intregando possibilidades de compreender os males do corpo e alma. Acredito que todo junguiano interessado psicossomática deveria estudar as medicinas tradicionais, para compreender o corpo e seu simbolismo, dinâmicas energéticas com a mesma seriedade que estudamos mitologia.
Na perspectiva junguiana simbolo é indissociavel da energia psiquica (ou biopsiquica pois, aqui falamos do corpo, ou tanto biológico e psiquica), Jung afirmava que os simbolos eram “transformadores de energia”. Os simbolos converteriam ou transformariam a energia tornando-a disponivel ao tanto a dinâmica do psique quanto ao uso voluntário.
Na prática, o conceito de energia é indissociavel do de afetividade como Jung observou desde o inicio de suas pesquisas com associações de palavras que conduziram ao desenvolvimento do conceito de complexos. A observação de como os fenômenos decorrentes da constelação complexos não só interferiam no curso da consciência (pela frequência e intensidade) assim como afetavam curva de pulso, curva respiratória e fenômenos psicogalvânicos indicaram para Jung o quanto a afetividade era uma manfestação energética refletida na integridade do individuo (na consciência, no inconsciente e no corpo).
Deste modo, a afetividade – emoções e sentimentos – são expressões da energia biopsiquica desde o corpo até os aspectos superiores do julgamento. As manifestações somáticas cono dor; movimentos involuntários, tremores, rigidez, sensações como anestesia, prurido, hiperemia, parestesias, cansaço, calor ou frio dentre ontras; deveriam ser compreendidas como simbolos – pois, indicam transformações de energia, com um signficado então oculto.
Daí a importancia considerarmos as medicinas tradicionais, que indicam meios de compreensão, narrativas e metaforas para processo saúde-doença. Em geral, baseiando-se em desequilibrio energético, problemas em relação com fatores socioambientais que afetam o corpo e a psique. É justamente esse aspecto sutil ou energético que nos permite mapear as manifestações arquetípicas no corpo, percebendo os padrões energéticos/afetivos manifestos no corpo que foram registrados ao longo dos milẽnios.
Os simbolos no corpo são uma expressão importante do inconsciente psicóide.
O inconsciente Psicóide
Jung incorporou em sua contrução teórica o conceito de psicóide de Bleuler, que indicava uma uma qualidade intermediária da experiência vital que não era nem propriamente psiquica nem somática.
Se uso o termo “psicóide” , faço-o com três ressalvas: a primeira é que emprego esta palavra como adjetivo e não como substantivo; a segunda é que ela não denota uma qualidade anímica ou psíquica em sentido próprio, mas uma qualidade quase psíquica, como a dos processos reflexos; e a terceira é que esse termo tem por função distinguir uma determinada categoria de fatos dos meros fenômenos vitais, por uma parte, e dos processos psíquicos em sentido próprio, por outra. Esta última distinção nos obriga também a definir com mais precisão a natureza e a extensão do psíquico, e de modo todo particular do psíquico inconsciente. (Jung, 2000a, 116)
O aspecto psicóide da psique compreende uma zona de integraç ão ou transição entre corpo e psique. Essa zona intermediária compreendemos como “inconsciente psicóide”, que nos permite compreender os fenômenos de psicossomáticos, assim como processos não-integrados ou pré-simbólicos.
Acima fizemos uma citação, onde Jung chama atenção para o fato de quanto mais profundo for o simbolo isto é mais arcaico (ou arquetípico), mais material/corporal se apresenta. Dessa forma, a maioria dos processos na esfera psicóide não atingem a consciência, se manifestando em alterações somáticas. As alterações podem se manifestar em forma mais simples que poderíamos chamar de disturbios associados ao bem estar (dores de cabeça, incomodos gastrointestinais), indicam as transformações que são frequentemente mas percebidos apenas como “sinais”por nossa consciência, como se fosse apenas um infortúnio sem significado. /
As transformações ou canalizações da energia podem ser percebidas pelo excesso ou hiperexcitaçao de um sistema ou órgao, ou pela deficiencia do dinâmica energética falta que é sentida lentidão, diminuição de funções. Isso significa que pode alterar o tónus muscular, a capacidade circulatória e respiratória e produção hormonal dentre outras. Podendo gerar tanto transtornos do bem estar quanto quadros mais graves que com alterações nos órgãos e tecidos. Tais processos poderiam se manifestar como sonhos ou intuições ( inclusive revelando adoecimentos somáticos) que levariam a elaboração simbolica, modificando a atitude da consciência, que proporcionando a modificação dos fatores que geraram o adoecimento.
É muito importante entendermos o inconsciente psicóide, expresso em símbolos somáticos, a que a elaboração dos processos de adoecimento pode se dar tanto por via psíquica, pela elaboração simbólica ou por via de intervenção somática, com a canalização e desbloqueio da energia biopsiquica através de métodos e praticas como acupuntura, yoga, massagens dentre outras – vale lembrar quem em suas memórias Jung afirma ter recorrido ao yoga para encontrar a estabilidade no inicio de seu processo de confronto com o inconsciente, posteriomente ao “encontrar as imagens por detrás dos afetos” ele pode continuar sua pesquisa.
Desta forma, a associação tanto de técnicas corporais (como o método caltônico desenvolvido por Pethő Sándor) como algumas praticas integrativas complementares à saúde (PICS) e analise/psicoterapia oferecem uma eficácia enorme justamente amplo trazendo uma possibilidade impar de lidar com adoecimento e a integração.
Self Imanente
Fazer a distinção de “Self” em transcendente e imanente é torna importante pois refletem dois aspectos do conceito de Self. O primeiro, transcedente, se refere aos aspectos mitícos, religiosos culturais compreendidos com frequência referenciado “imago dei”, ressalta o aspecto vivido na metade da vida, no processo de individuação. O Self imaente se refrere a base e corporal, a partir do qual o desenvolvimento se desdobra desde a vida intrauteriana e se desenvolve até o fim da vida.
Os dois autores junguianos que discutiram o desenvolvimento – Fordham e Neumann – concordavam que o Self inicialmente é integrado, corporal – ou primário. Noção que divergia nas noções clássicas inclusive das descrições de Jung. Sonu Shamdasani, reporta um relato de Mario Jaboby, de sua época de estudante no Instituto Jung de Zurique em 1959, que nos dá uma idéia de como essas duas perpectivas geravam polemica,.
Apenas, a sempre destemida Jolande Jacobi, que também estava presente, ousou contradizê-lo. Ela não estava feliz com a noção de Neumann de equiparando a experiência do bebê com a mãe com a do Self no sentido junguiano.[…] Ela estava – como ela disse – convencida do fato de que o Self é uma realidade metafísica que se estende na experiência humana. “Isso é exatamente o que o Self não é” interrompeu Neumann. Com seu humor, sua clareza de pensamento e sua influência persuasiva ele poderia se manter , mesmo em face de alguns analistas de treinamento presentes, todos diretos alunos de Jung. (Jung, Neumann, 2015, p. Lii)
Naturalmente, Neumann apresentava suas ideias a um público “delicado”, contudo, hoje compreendemos o Self nesses dois aspectos – transcendente e imanente. No nos diz respeito, ao compreendermos a dinâmica de desenvolvimento – quer é Fordham ou em Neumann – podemos perceber o Self no corpo, o Self o pano de fundo para o desenvolvimento da psique que nos permite compreender que o psiquismo emana das potencialidades arquetípicas desdobradas a partir do Self psicossomático.
Sobre esse temática do desenvolvimento convido o leitor a ler esses dois artigos que discuto o tema pela perspectiva de Fordham:
http://psicologiaanalitica.com/perspectivas-junguianas-acerca-do-ego-parte-1/
http://psicologiaanalitica.com/as-defesas-do-self-e-a-experiencia-traumatica/
Palavras Finais
Alguns elementos ficaram para outro texto como as defesas e resistências que operam no corpo. Acredito que em outro momento revistaremos essa temática da psicossomática que é um tema caro e precisamos ampliar a compreensão junguiana integrando aspectos fundamentais em relação às medicinas tradicionais e suas contribuições a compreensão da simbologia da dinâmica energética do corpo.
Referências
JUNG, C.G. Jung’s seminar on Nietzsche’s Zarathustra / edited and abridged by James L. Jarrett, Princeton, N.J. : Princeton University Press, 1998
JUNG, C.G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Petrópolis: Vozes, 2000.
JUNG, C.G. Natureza da Psique, Petrópolis:Vozes, 2000a.
JUNG, C.G.; NEUMANN, E. Analytical Psychology in Exile: The correspondence of C.G. Jung and Erich Neumann, Princeton : Princeton University Press, 2015.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi